Golpes militares clássicos não são os únicos capazes de pôr fim a democracias. Mundo afora, regimes democráticos padeceram pelas mãos de políticos que, eleitos pelo voto, usaram os cargos para demonizar a imprensa, enfraquecer o arcabouço legal de seus países, dividir a sociedade e transformar as instituições em simulacros a serviço de projetos pessoais de poder. Uma frase dita por Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia, ao início de sua carreira, aliás, estampa bem como autocratas como ele desprezam as regras tradicionais do jogo: “A democracia é como um trem, você desce quando chega ao seu destino”. Jair Bolsonaro demonstra compartilhar do mesmo pensamento e, por isso, é urgente enxotá-lo do Planalto.
Tão grande é o menosprezo do capitão pela soberania popular e pela Carta Magna de 1988 que, às vésperas das eleições, ele criou um factoide ao acusar rádios de não transmitirem inserções de sua propaganda eleitoral para prejudicá-lo. Mais do que isso, culpou o Tribunal Superior Eleitoral pelas supostas falhas, muito embora diversas empresas tenham rebatido as denúncias e a responsabilidade de fiscalizar a veiculação dos materiais seja dos partidos. O filho 03 do presidente, Eduardo, chegou a sugerir o adiamento do segundo turno, uma medida inconstitucional — a ideia, porém, não encontrou guarida no Centrão, base de sustentação da candidatura de Bolsonaro. (Imagine só o que o clã fará em 2026, se o capitão se reeleger agora).
Apesar de patética, a investida mostra que Bolsonaro está disposto ao vale-tudo para permanecer na cadeira presidencial. A ação serviu como gasolina para incendiar a base extremista do capitão, que, norteada por fake news, crê piamente que a Justiça Eleitoral trama pela vitória de Lula. O sentimento de desconfiança vem sendo alimentado há dois anos, com contestações de Bolsonaro ao resultado de 2018, às urnas eletrônicas e ao esquema de totalização de votos, além de acusações de parcialidade contra ministros, a exemplo de Alexandre de Moraes e Edson Fachin.
Não houve ponto sem nó na costura. Todos os movimentos foram diametralmente calculados para manter os radicais unidos para o caso da derrota. É que, para o capitão, Aécio Neves não teve sucesso ao questionar o resultado das urnas em 2014, quando perdeu para Dilma Rousseff por menos de 4 milhões de votos, por não contar com o apoio popular. Ele, por outro lado, gaba-se de ter uma militância mobilizada o suficiente para seguir os passos dos apoiadores de Donald Trump, que invadiram o Capitólio em 2020, e avalizar um até mesmo uma medida desesperada com alterações na lei via canetada.
Autoridades temem episódios de violência no país. Lembram que petistas foram mortos por bolsonaristas durante a campanha e pontuam que o ataque de Roberto Jefferson à Polícia Federal no último domingo demonstra o nível do perigo de extremistas armados. O risco é alto. Sublinhe-se que, nos EUA, durante a invasão do Congresso, cinco pessoas foram mortas e 140 policiais acabaram feridos.
Com um caos no domingo ou não, o fato é que o país está fragilizado. Bolsonaro trava uma guerra contra as instituições desde que assumiu a faixa presidencial. Não é que tenha se contraposto ao sistema, como costuma dizer. O capitão, na verdade, sempre tentou terceirizar a responsabilidade por seus fracassos. Começou pelo Congresso. Quando viu de perto o fantasma do impeachment, porém, percebeu que, em vez de demonizar o parlamento, seria mais produtivo comprá-lo. E assim o fez, com o Orçamento Secreto, que irrigou as bases de aliados do Planalto com mais de R$50 bilhões ao longo dos últimos três anos. A cooptação foi tamanha que, com os bolsos cheios, deputados e senadores avalizaram a compra de votos mais descarada da história, com a distribuição de dezenas de benesses em pleno período eleitoral.
Pacificada a relação com o Congresso, o Judiciário tornou-se o alvo preferencial do capitão. Bolsonaro esbravejou ao longo dos últimos três anos que o Supremo Tribunal Federal não lhe deixa governar. A crise começou quando Alexandre de Moraes o impediu, veja só, de colocar na diretoria-geral da Polícia Federal um amigo pessoal, o delegado Alexandre Ramagem, que, aliás, se elegeu deputado pelo PL neste ano. O clima esquentou com o tempo, sobretudo por causa dos inquéritos que miram aliados e até mesmo os filhos do presidente, Carlos e Eduardo, por ataques à Suprema Corte e pela atuação em milícias digitais que agem contra a democracia. Tomado pelo sentimento de vingança, Bolsonaro elegeu como prioridade, em um eventual segundo mandato, o impeachment de Moraes.
Foram, ainda, anos nos quais a imprensa passou por um processo de demonização apenas por noticiar os absurdos identificados no governo, como a negligência na pandemia, a atuação de pastores-lobistas no MEC e as interferências em instituições de Estado, a exemplo da Polícia Federal e da Procuradoria-Geral da República. Com a validação de Bolsonaro, a agressão física a repórteres tornou-se usual. Apenas nas duas últimas semanas, jornalistas foram atacados, por exemplo, durante a cobertura das celebrações do Dia Nacional de Nossa Senhora de Aparecida e da prisão de Roberto Jefferson.
O Brasil está imerso no caos, com parte da população vendada por técnicas autocratas que Bolsonaro tomou de exemplo de líderes políticos que regem democracias iliberais. É bem verdade que o país corre riscos com o terceiro turno que o presidente quer promover se perder para Lula. Mas as instituições mostraram que, apesar de cambaleantes, estão de pé para garantir o respeito à soberania popular. O verdadeiro perigo é a reeleição do presidente. A nação não pode legitimar o projeto de poder bolsonarista por mais tempo. O preço é muito alto — e pago em demoradas parcelas. Hungria, Turquia e Polônia são apenas algumas provas.