Foi de arrepiar. Tudo começou com um pequeno grupo de mulheres com roupas irreverentes, olhos cobertos por vendas pretas, marchando firmemente pela rua de Valparaíso, no litoral do Chile, e cantando uma canção de denúncia: “a culpa não era minha, nem onde eu estava, nem como eu me vestia. O estuprador era você. O estuprador é você”. A sincronia da coreografia, estrategicamente pensada, e as vozes em uníssono mostraram que as mulheres são realmente poderosas e capazes de enfrentar os abusos masculinos. A apresentação foi gravada em vídeo e viralizou, tornando-se um hino antiestupro em vários lugares. Alguns dias depois, dez mil pessoas repetiram o canto em frente ao Estádio Nacional em Santiago, capital do país. Em menos de 48 horas, passou a ser ouvida em Buenos Aires, na Cidade do México, Paris, Madri e Sidney. O que era um protesto local ganhou dimensão planetária. No Brasil, elas marcharam por todas as partes. Em São Paulo, centenas de mulheres entoaram o hino no vão do Masp e no Largo da Batata. No Rio de Janeiro, a manifestação aconteceu na Cinelândia e, em Porto Alegre, na Redenção e no Largo Expedicionário, com apoio de umo Centro Acadêmico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A música se chama “El violador eres tu” (“O estuprador é você”) e foi apresentada pela primeira vez na cidade chilena no dia 20 de novembro por militantes feministas. Foi criada pelo coletivo interdisciplinar “Las Tesis”, que traduz em linguagem acessível e artística estudos acadêmicos sobre a violência contra a mulher. A princípio, a letra e a coreografia tinham como objetivo apenas fazer uma apresentação local em meio a uma série de outros eventos realizados no Chile. Mas o grito isolado ganhou força. “Não pensamos nisso como uma música de protesto, era parte do nosso espetáculo performático”, disse Paula Cometa, desenhista, uma das quatro artistas que compõem o grupo. Ao lado dela, fazem parte do coletivo a figurinista Lea Cáceres e as artistas Sibila Sotomayor e Dafne Valdés, todas com 31 anos. A ideia das artistas de criar um hino surgiu quando, em meio aos temas estudados, encontraram a tese de Rita Segato, antropóloga argentina que estuda a desmistificação do estuprador como um sujeito que comete a agressão em busca de prazer sexual e não como uma exibição de poder. Ao se depararem com o tema, o quarteto se impressionou com os altos índices de violência sexual no Chile. E ainda descobriu que as denúncias não são devidamente punidas pela Justiça. A partir daí, vários fatores deram força ao movimento. A manifestação feminista se somou aos protestos sociais que tomam o Chile. O espetáculo de dança, programado para acontecer em um contexto acadêmico no dia 24 de outubro, foi cancelado. Depois, a ideia era fazer a apresentação no dia 25 de novembro, Dia Internacional do Combate à Violência Contra a Mulher. Mas as denúncias de abusos nos protestos no país foram tantas que elas resolveram antecipá-la.

Apesar de fazer referência ao contexto político específico do Chile (em determinado momento, a coreografia se refere à posição que as mulheres devem ficar para serem revistadas pelos policiais e aos abusos que sofrem nessas situações), a música encontrou identificação feminina em todo o mundo. A força estratosférica com a qual cresceu é um reflexo do quanto a mulher se sente oprimida e tem a necessidade de expressar sua indignação através da arte. “Quando o vídeo se torna viral, provavelmente é porque a violência sistemática que os seres-humanos sofrem a partir de estruturas do Estado moderno é viral. E se torna internacional porque, finalmente, é como um grito que cabe a todas nós dar”, diz Patrícia.

REVOLTA No Rio de Janeiro, mulheres cantam o hino antiestupro das chilenas (Crédito:Divulgação)