O músico e compositor Roberto Menescal, de 84 anos, é uma referência do passado, do presente e do futuro da arte e da cultura brasileira. Ao longo de seis décadas de carreira, tudo em que ele pôs a mão frutificou, ficou ainda melhor, como compositor, arranjador e produtor musical. Além disso, compôs ao lado de Ronaldo Bôscoli alguns dos maiores clássicos da Bossa Nova, como O Barquinho, Você, Nós e o Mar e Rio. Como diretor da gravadora Polygram, onde trabalhou entre 1970 e 1986, ajudou a transformar em obras de arte, discos de dezenas de nomes consagrados da MPB, como Nara Leão, Elis Regina e Chico Buarque. De Nara e Elis, cantoras rivais, que disputaram prestígio e o amor de Bôscoli, foi parceiro fundamental e ombro amigo nos momentos difíceis. Nara, inclusive, é tema atualmente do documentário O Canto Livre de Nara Leão, na Globoplay, que mostra sua importância fundamental para o desenvolvimento da música brasileira. “Nara foi responsável pelo começo de tudo, pela fundação da MPB”, disse Menescal à ISTOÉ. Neste momento, ele está envolvido com vários trabalhos destinados para crianças e cultiva uma promissora dupla com a cantora Analu Sampaio, de 13 anos, com quem quer fazer shows pelo Brasil assim que a pandemia acabar.

O que significa essa recuperação da memória da Nara Leão, esse atestado da importância histórica dela para a música e para a cultura brasileira?
Acho que é uma história que não estava contada ainda porque a Nara não começava uma coisa e continuava até o fim. Ela foi mudando, fazia, experimentava. Era muito curiosa em relação às coisas do Brasil principalmente. Contava-se um pouco sobre a Nara do samba, a Nara da Bossa Nova, a Nara do Opinião, mas não se reuniu a história toda. E quando se reuniu foi de uma maneira bem feita, bem mostrada. O que recebi de mensagens, telefonemas sobre esse documentário foi incrível. Mesmo para mim, que acompanhei tudo de perto, e para muita gente, foi uma surpresa.

O fato de ela ter uma mente livre, de buscar coisas novas e de circular em vários grupos gerou algum tipo de patrulhamento?
Existiu até o final e de várias maneiras. Houve um patrulhamento da própria Bossa Nova quando ela saiu. Eu sabia o porquê. A Nara era figura indispensável. Mas ela estava noiva do Ronaldo Bôscoli e a gente foi para a Argentina fazer um show com a Maysa. O Ronaldo e ela se envolveram. Na volta, um mês depois, a Maysa armou para mostrar que eles estavam noivos. Saiu em tudo quanto é jornal. E a Nara coitadinha, com 17 anos, sofreu muito com isso. Ela me telefonou querendo conversar e falou: Roberto, você viu tudo, é uma coisa muito séria e vou pular fora. Não quero mais saber dele. Mas para conseguir fazer isso, tenho que largar a turma porque você sabe que o Ronaldo tem um domínio muito grande. Então vou ter que sumir de vocês. Morri de pena, mas entendi.E no que ela sumiu da gente, encontrou o samba, levaram ela para o samba do morro, do Zé Keti. Isso é o começo da MPB.

Você acha que a MPB começa ali?
Quer dizer, você para com aquela coisa de só Bossa Nova ou Tropicália e vira a MPB, é o começo ali. Vem o morro, vem Roberto Carlos, vem tudo. A Nara passa a ter uma importância muito grande. A Nara foi responsável pelo começo de tudo.

E como você viu essa migração para o samba do morro?
Na época eu sofri muito. Mas logo depois entendi e pensei que alguém precisava ter feito isso. Nara trouxe o morro para o asfalto, para os teatros. Depois fez o disco do Roberto Carlos. A gente via a Jovem Guarda como algo menor. Mas aí ela grava Quero que vá tudo pro inferno.

O apartamento dos pais de Nara era um lugar de criação?
Criava-se muito lá. Posso garantir que umas duzentas músicas nasceram na casa da Nara porque lá se reunia a turma de criação, Carlinhos Lira, o Luiz Eça, o Ronaldo. Eu, por exemplo, custei a começar a fazer porque o Carlinhos com o Ronaldo era uma música por noite. Não estou exagerando. Toda noite saia uma música, eu doido para fazer, mas não podia cortar ali a coisa. Mas no dia que o Carlinhos deu um bolo no Ronaldo, Ronaldo ficou fera com o Carlinhos e falou que não queria mais saber dele. Dei uma música para o Ronaldo e ele falou oba, vamos fazer juntos. As duas primeiras que fizemos ficaram muito ruins, uma é Jura de Pombo e a outra Luluzinha Bossa Nova. Mas a terceira ficou boa. Chama-se Errinho à Toa.

Como era seu processo criativo?
Tinha um modo de fazer música diferente do pessoal, que sentava um pouco e fazia. Eu era muito de esperar acontecer uma coisa e fazer uma música. Estava no mar e olhava uma paisagem bonita. Um dia estava no Arpoador, vi o mar, vi o pessoal fazendo surfe e as montanhas em que nunca tinha reparado muito. O Rio é uma das poucas cidades do mundo com as montanhas quase na beira do mar. Aí é “Rio que mora no mar/Sorrio pro meu Rio/Que tem no seu mar”. As músicas saiam muito assim de repente ou às vezes de uma coisa que uma pessoa dizia, falava uma palavra e dava uma música.

De que maneira o Tom Jobim influenciou sua carreira?
Teve um dia que o Tom bateu na minha porta. Ele precisava gravar a trilha do Orfeu do Carnaval. Eu nem acreditei, quase cai para trás de emoção. E eu fui e gravei com ele. Sou músico principalmente por causa do Tom, porque até então eu tocava, mas estudava para o vestibular de arquitetura, para entrar na Marinha e me preparava para o exame do Banco do Brasil. Aí o Tom falou, Menesca, vamos ali que vou acertar o cachê com você. Eu digo, cachê de quê? Por você ter gravado isso aqui, gravou três horas seguidas. Não, não recebo. Então vamos conversar. Aí fomos jantar e ele perguntou o que eu estava fazendo da vida. Mas você não quer ser músico? Então larga essas bobagens todas.Virei músico de um dia para o outro.

Ao que você atribui essa permanência da Bossa Nova?
A Bossa Nova é como o jazz. O jazz está fazendo 100 anos agora. A gente tem 60 anos mais ou menos. E como no jazz, não saímos em busca do sucesso. Não que a gente não quisesse. Até queria. Mas a intenção era fazer uma música mais rica de harmonia, letra, porque as letras daquela época eram muito sofridas. Eram “ninguém me ama, ninguém me quer”, “como eu sou infeliz”, e a gente com 18 anos não tinha como cantar essas músicas. Nós éramos tão felizes. Nossa intenção era fazer música boa. Acho que essa é uma das razões porque ela dura até hoje. É a qualidade das harmonias e letras.

Vivíamos numa ditadura nos anos 60. Havia divisão entre o músicos por causa da política?
No meu caso o que aconteceu foi o seguinte: o próprio Ronaldo Bôscoli, o cafajeste mais simpático do Rio, sacava as coisas antes da gente. Aí um dia, em 1964, ele falou: Beto, vou propor uma coisa, vamos parar de compor? Por que Ronaldo? Porque nossos assuntos não são para hoje. Estamos alienados sobre o que está acontecendo no Brasil, nunca fomos metidos com política. A gente não pode mais cantar dia de luz, festa de sol quando o pau está comendo. Tem amigo nosso preso, que sumiu. Então ele falou que ia hibernar por uns dois anos até que a situação se normalizasse. Demorou vinte e poucos anos.

A gente está vivendo um momento político complicado. A situação atual te incomoda?
Está muito perigoso porque você vê que estão tirando os incentivos fiscais para shows, para tudo, para qualquer coisa ligada à cultura, as verbas estão sendo cortadas, não interessa a esse governo. Eu não quero ficar falando como já falei sobre as coisas que vão contra o desenvolvimento cultural do país. Mas não ter verba para fazer show? Você pode até reformular a coisa, estudar melhor, ver talvez os artistas que não precisem de incentivo do governo para fazer a sua carreira e dar chance para os que não têm essa condição. Mas cortar as verbas, abaixar tudo. A cultura brasileira vive um momento muito sofrido.

Como diretor artístico da Polygram você deixou de compor. Lamentou esse afastamento?
Fiquei quinze anos lá. Não tinha nem violão mais. Não lamentava muito porque não tinha tempo para pensar nisso. Imagina fazer o disco do Chico Buarque, escolher as músicas, gravar e logo que termina a cabeça já está pensando no disco da Elis. Não vou falar do casting todo. Era uma loucura. Impossível pensar em compor. Fiz uma música em quinze anos, que foi para o filme Bye Bye Brasil, do Cacá Diegues.

E você teve que enfrentar a censura como produtor?
Fui um dos caras que mais lutou contra a censura. Duvido quem tenha lutado na censura para liberar tantas músicas de artistas como eu. Eu dei a ideia para o Chico gravar um disco com composições dos outros. Foi o Sinal Fechado.

Queria falar um pouco da pandemia. Como sua vida tem sido afetada nesses dois anos?
Fui meio pego de surpresa, tinha inclusive no dia 22 de março de 2020 um show do lançamento do disco que fiz com o Bossacucanova, grupo do meu filho. Mas aí parou tudo. E o que vou fazer? Fiquei em casa, saía todo dia para ir no meu estúdio e começaram as coisas. Olha, Roberto, vai ter um negócio, uma entrevista, não sei o que, você pode fazer? Começaram as lives, aquilo foi crescendo e uma coisa interessante é que o mundo da música começou a se ligar muito no Brasil. Vários grupos e artistas entraram em contato comigo.

Seu trabalho remoto foi intenso?
Fiz muita coisa, acabei de receber uma cantora portuguesa e gravei uma música com ela. Trabalho mais agora do que antes. Comecei a topar mais as coisas. Teve uma russa que veio aqui. Chegou e falou que queria contratar eu, o João Donato e o Marcos Valle para participar do disco dela. Pagou um cachê bacana.

Sua programação atual está bem orientada para as crianças. Tem show com a Georgeana, do Bossinha Legal, e o clipe animado com a versão de O Barquinho. Como é isso?
A Georgeana é minha nora. E a filha dela, Maju, minha neta, está com seis anos agora e desde o três é afinadinha. A Georgeana perguntou o que eu achava de fazer um disco infantil. Aí a gente escolheu, por exemplo, Lobo Bobo, do Carlinhos Lira, O Pato, e compôs cinco músicas para o disco. Fiz uns arranjos com levadas bacanas porque criança gosta de dançar. O show está pronto. Também estamos lançando o clipe animado de O Barquinho, da Bruna e da Erika Carvalho. Está muito bonito.

Nara, Elis, Wanda Sá, Sylvia Telles, tantas mulheres. A voz feminina da vez é Analu Sampaio?
Estou apaixonado por ela. É uma menina de 13 anos que vi pela primeira vez no The Voice com 11 anos. Tirou o segundo lugar cantando Madalena e fiquei impressionado. A afinação, o embalo, o jogo com o ritmo. Depois vi que sua história é longa, com 5 anos ela já estava na TV. Um dia o pai dela me ligou. Vem cá Roberto, sou o pai da Analu e ela tem vontade de fazer um clipe com você. Aí fiz. Ela canta, compõe, escreve, dança, filma e monta tudo. É uma artista completa. A gente está fazendo um repertório de 20 músicas para sair pelo Brasil afora. Tenho vontade até de botar o nome Encontro de Gerações. Setenta anos nos separam.