Como qualquer cidadão consciente, a psicóloga e empresária Viviane Senna, presidente do Instituto Ayrton Senna, está apreensiva com o avanço do coronavírus. A pandemia causou surpresa e desorganização na sociedade em todo o mundo. Mas, para ela, a situação atual se insere numa era de mudanças constantes e abruptas que impõem a necessidade das pessoas desenvolverem atributos socioemocionais. Por causa do vírus, transformações importantes que demorariam décadas para acontecer, deverão ser aceleradas. No lugar do simples uso da razão, a ameaça da doença exige colaboração, empatia, confiança, respeito, persistência, disciplina, criatividade e estabilidade emocional e desperta características humanas que vinham sendo negligenciadas. Segundo ela, o vírus está mostrando, por exemplo, que as divisões entre ricos e pobres e disputas entre partidos, ideologias e religiões são pouco importantes. “Não existem mais certezas, o mundo é incerto o tempo todo”, disse Viviane à ISTOÉ. “Se não tivermos uma relação de respeito e empatia com os outros, todos seremos atingidos”.

Como a senhora vê a situação atual?
A situação é inédita e não têm precedentes. Ela afeta todo o planeta e todas as pessoas, dos mais jovens aos mais velhos. Embora tenha essa intensidade desconhecida para nós até hoje ela representa um conjunto de situações que a gente já vem vivendo e foi tipificado em uma sigla, em um acrônimo, o Vuca, formado pelas iniciais de quatro palavras em inglês: volátil, incerto, complexo e ambíguo. A expressão foi cunhada pelo exército americano, na década de 1970, para lidar com situações complexas de guerra. Depois o termo passou a ser usado num contexto empresarial e também numa visão mais estratégica para caracterizar o mundo de hoje. Não existem mais certezas, o mundo é incerto o tempo todo. E é complexo pela grande quantidade de variáveis interagindo ao mesmo tempo. É difícil fazer uma análise, o mundo é ambíguo, as coisas não tem contornos muito definidos e não é mais isso ou aquilo, é tudo junto. Tanto é assim que os planos estratégicos dos governos e das empresas não são mais de longo prazo.

E essa crise vai passar?
Essa situação que a gente está vivendo é um exemplo desse mundo que veio para ficar. Este passa a ser o padrão. O surgimento do coronavírus é um exemplo dessa dinâmica que se instalou no mundo. É assim o tempo todo. A mudança passa a ser a regra. As pessoas acham que tudo vai voltar ao normal, mas isso não vai acontecer. A gente está com a mentalidade dos séculos 19 e 20 e não enxerga que o modelo mudou, não é mais o padrão anterior.

O Covid-19 pode levar a uma tomada de consciência sobre essa mudança?
Essa situação dramática que a gente vive aumentou o tom de uma música que já vinha tocando. Mas a gente não ouvia bem. Agora brecou todo mundo. Não consigo mais tomar decisões num cenário desses. Há três meses não tinha esse cenário. Todo o planejamento estratégico de governos, empresas e pessoas foi por água abaixo. E agora nós desligamos o mundo ao mesmo tempo. E não sabemos como vai ser ligado de novo.

Os fatos estão nos atropelando?
A velocidade com que as coisas mudam é enorme e ela vai se intensificar ao longo do tempo. É uma corrente cada vez mais veloz que vai mudando os padrões, não só de conhecimento, mas de comunicação, de relacionamento. Todos os campos da vida estão mudando. Antes as pessoas tinham uma profissão em toda sua vida. Hoje, nos Estados Unidos, se estima que a pessoa terá de 13 a 14 empregos até os 34 anos. Uma criança hoje com 5 anos vai passar por uma mudança científica e tecnológica nos próximos 15 anos equivalente a que gente passou nos últimos 150 anos. O nível de imprevisibilidade é cada vez maior.

E como fica a educação nesse processo caótico?
Quando você tem que formar pessoas no sistema educacional, você tem que formar pessoas para o mundo que elas vão viver. E que planeta vai ser esse? Que mundo vai ser esse? Que tipo de pessoas a gente vai preparar para fazer com que esse mundo dê certo. A gente está passando de uma era para outra. Nós estamos fazendo um transito de eras como a gente fez da revolução agrícola para a industrial. Nós pegamos essa fase da era industrial e estamos entrando numa outra transição civilizacional do mesmo porte ou ainda maior.

O sistema educacional está preparando as crianças para esse cenário?
Não estamos preparando as pessoas adequadamente. Estamos preparando para um cenário dos séculos passados. O sistema educacional vigente no mundo inteiro surgiu no final do século 18, criado pelos iluministas. O Iluminismo criou o liberalismo econômico, o liberalismo político, o desenvolvimento científico e a escola, e deu o golpe final no sistema agrícola e nas monarquias absolutistas. Os iluministas vieram e disseram que a razão era o único caminho para o conhecimento e a verdade. Para distribuir o conhecimento eles criaram a Enciclopédia e a escola pública, laica e gratuita. A escola foi revolucionária. Ela se tornou o principal instrumento de libertação e distribuição de conhecimento em larga escala. Mas o mapa genético da escola é esse: desenvolvimento de pensamento de ordem racional e transmissão de conhecimento. A escola é uma velha senhora que tem 200 anos e faz o mesmo em todos os países, não importa etnia, religião e classe social.

Como o coronavírus pode afetar a educação imediatamente?
Hoje distribuir conhecimento não é mais linha de chegada, só de largada. Conhecimento se tornou commodity. A escola está desatualizada com relação à sua missão. As pessoas precisam agora de outras ferramentas.

O que, por exemplo?
A gente está vendo que para lidar com o vírus você tem que ter uma atitude de isolamento e que tem que ser compartilhada por todos, todos tem que colaborar com isso ao mesmo tempo para a gente achatar a curva e não ter um colapso no sistema de saúde. Que tipo de habilidade isso exige? Exige colaboração, confiança das pessoas umas nas outras, nas autoridades, na ciência. Você precisa de um padrão de confiança.

As habilidades socioemocionais precisam ser desenvolvidas?
Ao lado das habilidades cognitivas, você precisa de um novo grupo de habilidades. E isso vai além da fronteira cognitiva. Envolve colaboração, empatia, confiança, respeito, persistência, disciplina, abertura ao novo, criatividade, estabilidade emocional. Todas essas habilidades são de natureza socioemocional. Está se falando muito em solidariedade atualmente. As pessoas estão reaprendendo a ser solidárias. Isso é colaboração e empatia, exige
se colocar no lugar do outro e confiar e colaborar com o outro. Não vai ser construindo muros, como Donald Trump queria, que você vai impedir o vírus de passar, não vai ser tendo uma atitude xenofóbica, evitando imigrantes, que a gente vai fazer a contenção do vírus. O coronavírus não tem passaporte, não tem preconceito, é absolutamente democrático, atinge tanto o chinês como o americano ou o italiano.

Mas nesse caso é o medo da morte que mobiliza as pessoas.
O medo é um sentimento. A gente está sendo obrigado a enfrentar o sentimento e descobrir jeitos de evitar o pior resultado, um efeito trágico. E como a gente lida com esse risco? A gente lida, primeiro, com o pilar racional, com a informação científica. Mas só distribuir conhecimento não é suficiente, é necessária a colaboração das pessoas, confiança nas autoridades, empatia pelos mais velhos. Ao ficar em casa, é preciso lidar com a angústia, com a ansiedade e não ser consumido pelo medo. É necessária a gestão emocional desse conjunto de sentimentos para não ser envolvido por eles.

O vírus iguala os seres humanos?
O vírus está nos ensinando que essas divisões entre ricos e pobres, entre partidos e ideologias, disputas políticas, religiosas, econômicas, tudo isso importa pouco neste momento. Se nós não tivermos uma relação de respeito, de empatia e de confiança uns nos outros, todos seremos atingidos. É como se o vírus estivesse dizendo que nós somos uma única humanidade. A gente recuperou de novo uma unidade que havia sido perdida, uma unidade que mostra que nós somos um único organismo e quando um membro sofre, todos sofrem.

Como um educador tem que agir numa situação como essa?
Precisamos parar de formar pessoas olhando para o retrovisor e formá-las para o século 21. As competências emocionais serão tão importantes como as cognitivas para resolvermos os grandes problemas da humanidade, como o aquecimento global, o tráfico de drogas, o tráfico humano, o terrorismo, as epidemias. Há uma falta de lideranças. As lideranças que surgem pregam a xenofobia, o isolacionismo e fomentam preconceitos de todas as naturezas. Elas vão na contramão da história, pregam o questionamento da ciência, questionam se a Terra é redonda, negam o Holocausto.

Esses líderes são o Trump e o Bolsonaro, por exemplo?
Eu não vou dar nomes de ninguém porque os nomes pouco importam. Mas a gente está vendo uma onda antiglobalização, uma crise de confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. É uma atitude muito perigosa.

Estamos prepararando os nossos filhos para esse novo mundo?
O lado emocional está sendo requerido para enfrentar os desafios do século 21 por causa de toda essa instabilidade. Pais e professores devem entender essa mensagem. Isso precisa ser feito de maneira intencional. O sistema precisa criar métodos para desenvolver nossas crianças.

As crianças estão sem aulas, tiveram suas rotinas interrompidas. Isso vai perturbar o sistema educacional?
Esse tipo de situação tem um lado negativo, que é a força desorganizadora que ele gera porque ninguém estava preparado para isso. Todos foram pegos desprevenidos. Até a semana passada era de um jeito e de repente, de um mês para o outro, tudo mudou. Temos cerca de 1 bilhão de alunos no mundo sem aulas e mais de 100 mil escolas estão paradas. Temos o lado ruim, que é o da surpresa, da desorganização, mas há um lado bom, que é acelerar certas mudanças que a gente levaria muitas décadas para fazer.

O aprendizado será comprometido?
Vai. Essa é uma conta que todo mundo está fazendo. Na Itália, o ministro da Educação já disse que não vai dar para repor as aulas. No começo se pensava em repor as aulas perdidas. Você vai ter lacunas de aprendizagem, mas o mais importante é entender que será necessário criar outra forma de aprendizagem que vai ser acelerada por conta de situações difíceis como a atual.

A educação à distância vai ajudar?
Ela tem uma série de qualidades e um grande campo para se desenvolver. A inteligência artificial tornará a educação menos padronizada pela média e mais individualizada, sob medida para cada aluno, que é uma coisa muito bacana. Agora, toda tecnologia, seja à distância, seja o quadro negro e o giz, só vai nos ajudar se soubermos o que fazer com elas. Estudos mostram que só a introdução de tecnologia, qualquer que seja ela, não garante uma melhora na curva de aprendizagem do aluno. Se você continuar desenvolvendo só matemática, português, ciências etc, por mais brilhante que você seja, com a melhor tecnologia, você não vai preparar o aluno para esse mundo que está vindo. A tecnologia, se for bem usada, pode contribuir, mas não é suficiente.