Rede Globo/João Cotta

Duras críticas a todas e quaisquer manifestações de preconceito étnico, racial e de gênero tornam-se, acertadamente, cada vez mais um marco civilizatório em todo o mundo. É bom que isso ocorra, também, como reforço à democracia social. Essa ficha parece não ter caído, no entanto, para uma parcela da indústria cultural, de entretenimento e produção artística. O assunto veio à baila nos últimos dias após o lançamento da série “Fate: A Saga Winx”, da Netflix. Os assinantes da plataforma começaram a acusar os produtores de discriminação pelo fato de eles privilegiarem atrizes e atores norte-americanos e britânicos, independentemente da etnia que alguns personagens têm de representar. “O que vemos nessa série é a afirmação de um padrão”, diz o sociólogo da Universidade Mackenzie, Rogério Baptistini. “Forma o imaginário de como deveria se constituir o ser humano perfeito”. Para quem não é familiarizado com o mundo das fadas, vale retomar a origem e inspiração da série. A “Saga Winx” chamava-se “Clube das Winx” e tratava-se de um desenho animado no qual oito meninas se matriculam em uma Escola de Fadas para lapidar os seus dons sobrenaturais. O enredo da história, obviamente, nada tem a ver com preconceito racial. Ele, o preconceito, começa quando o desenho ganha atrizes de carne e osso e vira uma live-action. É nesse momento, na escolha de quem vai atuar, que começa o processo de Whitewashing – leia-se embranquecimento, termo empregado para apontar produções culturais que substituerm negros, pardos, asiáticos e latinos por pessoas brancas.

QUASE BRANCA Na capa da revista Vogue, Kamala foi esbranquiçada: absurda discriminação (Crédito:Divulgação)

Perverso estereótipo

De volta à série, exemplo disso é a personagem Flora, que foi excluída e substituída pela fada Terra. Flora interpretava uma latina de Porto Rico. Terra é branca e de olhos extremamente claros. Outro exemplo é o da fada Musa, inspirada na atriz Lucy Liu, filha de chineses. Apesar dos traços orientais, ela é vivida na série por Elisha Applebaum: inglesa e branca. “Recentemente, Kamala Harris sofreu Whitewashing na capa de uma revista”, diz a professora da Unicamp e presidente da Comissão de Diversidade Étnico-Racial, Debora Jaffrey. Kamala, recém-eleita vice-presidente dos EUA, teve seu tom de pele esbranquiçado na capa da revista Vogue. Ela, escolhida por Biden justamente por ser uma mulher negra, tornou-se branca no ensaio fotográfico. “É uma ação racista e uma ligação direta com o racismo estrutural e institucional”, explica Debora. Equivoca-se quem julga que a saga das bruxas é exceção. No filme “A vigilante do amanhã”, de 2017, baseado em um mangá e passado no Japão, a protagonista, quem diria, é a atriz norte- americana Scarlett Johansson. E há até o absurdo do que se pode chamar de “Yellowface”: na novela Geração Brasil, o ator Rodrigo Pandolfo valeu-se de fitas transparentes e barbante para estereotipar olhos puxados.

“Whitewashing é a afirmação de um padrão que forma o imaginário de como deveria se constituir o ser humano perfeito”
Rogério Baptistini, sociólogo do Mackenzie

A origem do embranquecimento, ou seja, dessa trucagem absurda e preconceituosa, está lá no início do século passado e, ironicamente, em um procedimento contrário, batizado de Blackface: atores negros eram banidos das produções, e brancos eram pintados de preto. Em 1927, é isso a que se assiste no primeiro registro sonoro do cinema: “O cantor de jazz”, protagonizado pelo ator branco Al Jolson. Nesse e em outros brancos pintados de preto, os traços da etnia negra são intencionalmente exagerados, em um perverso estereótipo. Quem ama cinema, viu Othelo, de William Shakespeare, vivido pelo britânico Laurence Olivier (1965). Othelo, na obra shakesperiana, é negro. A produção preferiu pintar Olivier. Cabe a pergunta: não havia nenhum ator negro capaz de fazer o papel? Claro que sim. Na televisão brasileira, e bem recentemente, essa mesma estereotipagem de traços forçados foi um padrão seguido no programa humorístico “Zorra Total”, com a personagem Adelaide. Quem a fazia não era uma mulher, mas, sim, um homem tingido de preto. Com todos os casos citados, fica claro, assim, que o Whitewashing e o Blackface são dois lados da mesma moeda da discriminação.