Manifestações antidemocráticas pedindo intervenção militar contra o resultado da eleição continuam diante de quartéis em cidades como Brasília e São Paulo. Mas as camisas amarelas da seleção brasileira, usadas pelos bolsonaristas como uniforme para os atos golpistas, vão ganhar outro significado assim que o Brasil estrear na Copa do Mundo do Catar. O torneio começa neste domingo, e o time brasileiro estreia na quinta-feira, 24, enfrentando a Sérvia. Pela primeira vez disputada no final do ano, devido às altíssimas temperaturas no país árabe nos meses de junho e julho, a Copa do Catar virou uma chance para a pacificação política. A “amarelinha” volta a seu caráter esportivo original, como símbolo de orgulho e unidade nacional. E a conquista do título pela sexta vez parece ser o único objetivo que lulistas e bolsonaristas poderiam compartilhar neste momento. A velha máxima dos cronistas esportivos, de que “futebol é resultado”, ganha uma nova dimensão. O hexa esperado desde 2002 pode injetar uma atmosfera de alegria e sepultar, ou pelo menos esmorecer, as diferenças políticas, estabelecendo uma trégua. Para aqueles que possam duvidar do poder do futebol nessa unificação, vale lembrar que torcer pelo Brasil na Copa há tempos coloca lado a lado torcedores de times diferentes, alguns com rivalidades tão fortes que já engordaram até as estatísticas de mortos em brigas de rua. Torcedores que juram ódio eterno um ao outro fazem a pausa diante de um “inimigo” comum. Até uma esperada final, no dia 18 de dezembro, esquerda e direita têm pela frente sete seleções rivais para focar sua ira.

FERIADO Cerca de 50 mil apoiadores de Bolsonaro se reúnem em Brasília na terça (15), diante do Quartel General do Exército: uniforme em verde e amarelo (Crédito: Leo Bahia )

O uso político do uniforme não é inédito, mas poucas vezes foi tão escrachado. Desde a campanha de 2018, apoiadores de Bolsonaro aumentaram o uso do verde e amarelo em suas ações. Nos quatro anos de mandato, as seguidas manifestações a favor do presidente reuniram multidões com essas cores. A usurpação da bandeira e de outros símbolos pátrios chegou a níveis indecentes nas comemorações do Sete de Setembro, quando Bolsonaro transformou a data nacional em comício partidário. Neste ano, o Bicentenário da Independência foi “sequestrado” pelos apoiadores radicais do presidente. Antes disso, a instrumentalização já era preocupante. Contra isso, em agosto, duas marcas lançaram uma campanha publicitária com mensagens que pediam às pessoas que se lembrassem da camisa amarela como símbolo de todos os brasileiros. As marcas eram a Nike, fornecedora de material esportivo da CBF, e a Ambev, patrocinadora oficial da seleção. Com locução de Galvão Bueno, sempre a “voz oficial“ das Copas, o texto dizia: “Independente das nossas diferenças fora de campo, chegou a hora de lembrar o significado original da nossa camisa. Tire a amarelinha do armário e vista a sua camisa. Ela é sua, é minha e de toda a nossa torcida”.

Amarelinha pirata

No segundo turno da eleição, Bolsonaro votou vestindo camiseta amarela com a gola verde. Uma versão inequívoca e mais simples da camisa da seleção, mas não a oficial confeccionada pela Nike. Não se sabe de algum pedido ou ação da empresa nesse sentido, mas é fato que nos últimos tempos o presidente abandonou a camisa oficial, usando sempre simulacros da amarelinha. No lado oposto da bicromática disputa eleitoral deste ano, o vermelho parecia derramado sobre as multidões que apoiavam Lula. Mesmo com a utilização política das cores nacionais pelos bolsonaristas já transformada em discussão midiática, o PT não fez nenhuma menção a esse debate antes de ganhar a eleição. O vermelho começou a diminuir no segundo turno, por sugestão da emedebista Simone Tebet, recém-incorporada à campanha. Lula seguiu a orientação dela e adotou mais roupas brancas, numa referência mais do que óbvia a uma mensagem de paz ou, no mínimo, menor radicalismo na disputa.

Apenas depois de eleito, Lula dedicou alguma atenção ao embate das cores. Em discurso no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, no último dia 10, disse que vestirá a camisa verde e amarela. “A Copa do Mundo começa daqui a pouco e a gente não tem que ter vergonha de vestir a camiseta verde e amarela. O uniforme não é de partido político, é do povo brasileiro. Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13”, falou o presidente eleito, que reproduziu a declaração em seu twitter. Na contramão dessa cruzada pacifista com o uniforme, uma iniciativa provocadora ganhou a internet há três semanas. É a comercialização de uma camisa da seleção brasileira estilizada de vermelho. É vendida em sites diversos, numa produção nada oficial. Essa versão que serviria para identificar o torcedor “patriótico de esquerda” tem modelos que até exibem ilegalmente o logo da Nike. Ao invés de trazer paz, no entanto, a iniciativa parece favorecer a animosidade entre os lados. Nas redes sociais, simpatizantes do PT brincam que precisarão “ressignificar” o uso da camiseta canarinho. O ideal é que toda a população volte a celebrar os emblemas nacionais e a torcer pelo País sem que isso signifique endossar partidos ou políticos.

Ministério e seleção

Depois do anúncio de seu ministério, prometido para depois de sua volta da COP27 no Egito, Lula deverá dar atenção também à seleção, pois sabe muito bem o poder que uma boa campanha do time pode ter no ânimo dos brasileiros. Mas será que esse congraçamento visual levará à união e trará maior cordialidade entre as facções? “O que vai acontecer é uma coisa que os antropólogos sabem há muito tempo: é uma segmentação externa. O Brasil vai ser representado por um grupo de pessoas através de uma instituição que é muito forte no País, o futebol. Nós fomos campeões do mundo várias vezes e estamos indo rumo ao hexa”, diz o antropólogo Roberto DaMatta, que recebeu neste ano prêmio da Academia Brasileira de Letras por sua obra, construída sempre a partir da cultura popular, analisando fenômenos como o Carnaval e o famoso “jeitinho brasileiro”. Além, claro, do futebol. No esporte mais popular do mundo, é possível o Brasil assumir o papel de protagonista de primeira linha. “Tanto é que, hoje, o futebol mundial segue o estilo do brasileiro. A gente ganhava com mais facilidade antigamente, porque surpreendia mais, o isolamento era maior. Hoje, com a globalização, com as viagens, os jogadores são cosmopolitas, se internacionalizaram e viraram milionários.” A união da torcida também pode ser creditada ao aspecto de o futebol ter chances de subverter as concepções aceitas sobre o Colonialismo. “Se você foi colonizado uma vez, será sempre colonizado? O futebol prova que isso não é verdade. Então, uma Copa do Mundo é o Brasil jogando contra o mundo todo. É o Brasil contra o outro.”

“A Copa do Mundo começa daqui a pouco e a gente não tem que ter vergonha de vestir a camiseta verde  e amarela. A camiseta não é de partido político, é do povo brasileiro.Vocês vão me ver usando a camiseta amarela, só que a minha terá o número 13” Lula, em frase dita no dia 11 de novembro e publicada no twitter

Para DaMatta, a vontade de vestir a mesma camisa virá. “Diante de uma eleição que se polarizou, eu não sou vidente, sou antropólogo, mas o fato é que, como observador, é óbvio que depois dessa polarização vai haver esse sentimento se o desempenho do time for bom. Uma coisa que diferencia radicalmente o futebol da política é que no futebol não pode ter populismo. Pelo contrário. Um técnico populista no futebol vai dizer que seu time vai ganhar sempre, mas não ganha. No esporte você pode ser rico, poderoso, mas não ganha todos os jogos. A certeza de perder é importante na criação ou na concepção ideal daquilo que a gente chama de democracia. É impossível a ditadura no Campeonato Brasileiro, no Campeonato Carioca, porque um dia o Palmeiras vai perder, o Flamengo vai perder.” Sobre os efeitos que um título na Copa teria sobre o comportamento de apoiadores de Lula e de Bolsonaro, o antropólogo acredita que o próprio desenrolar da Copa já trará impacto nessa relação, mas não acredita na diluição total das polarizações, que ele considera interessantes. “Era preciso que o Brasil tivesse uma direita visível. Eu estou falando de direita e esquerda civilizada, né? A esquerda a gente já conhecia. A gente conheceu uma direita bárbara e uma esquerda que entrou na selvageria fazendo guerrilha, luta armada.”

Em aquecimento

Mesmo com a polarização política, o entusiasmo da torcida pela Copa está aumentando. A atenção total certamente virá, como em outros mundiais, quando o juiz apitar o início do primeiro jogo da seleção. A terapeuta infantil Letícia Pereira Arcanjo, 25 anos, fotografada com a amarelinha nas ruas de São Paulo, ainda está receosa. “Atualmente estou tentando desconstruir a imagem da camiseta amarela, porque ela tem representado a direita. Mas pretendo começar a usar, ainda que com um pouco de receio. Acho que precisam acontecer muitas coisas para que haja união.” Para Pierre Sfeir, dono desde 1975 de uma loja de fantasias e decoração na Ladeira Porto Geral, região de comércio popular em São Paulo, esta é a primeira vez que o espaço dedicado à Copa divide as vitrines com o Natal. Dentro da loja, Aline Tonin e Bruna Nedel, do Mato Grosso, compraram decoração para uma clínica de estética. Para Bruna, o evento pode reconstruir as relações. “Estamos torcendo para que essa Copa venha aliviar um pouco o clima, porque está horrível. A gente torce para que todo mundo se distraia um pouco, volte a ser feliz, a se unir, porque essas eleições foram as mais segregadoras que eu já assisti”, critica. Em uma barraca de rua, o médico Felipe Carneiro, de Salvador, fez uma reflexão sobre a utilização da camisa da seleção como capital político. “Acho que as pessoas pegaram um símbolo que é do Brasil e transformaram em um movimento político, em alguns momentos até antidemocráticos. A camisa da seleção brasileira não tem nada a ver com isso. Vou usar porque torço para o Brasil.A imagem é uma só.”

DOIS LADOS DO MUNDO Crianças jogam bola em rua decorada em Manaus (abaixo), enquanto bloco de torcedores vestidos com a camisa do Brasil já fazem festa no Catar: alguns homens na foto acima são indianos, porque o país adota Brasil e Argentina como seus favoritos nas Copas e eles vestem os uniformes e se misturam com a torcida (Crédito:Michael Dantas/ AFP)

A camisa verde e amarela já está nas ruas do Catar. Torcedores brasileiros passeiam pelo país e têm uma companhia surpreendente: muitos indianos devidamente paramentados com a amarelinha aparecem para engrossar a multidão movida a batucada. Os indianos são a primeira surpresa deste mundial. Sem tradição alguma no futebol, eles acompanham pela TV jogos de times e seleções de outros países, e demonstram uma afeição ainda sem uma boa justificativa pelos times sul-americanos. Há também no Catar muito indiano com a camisa da turma de Leonel Messi. Até no exterior, o futebol é capaz de operar milagres e provocar confraternizações supreendentes.

Empate ideológico
Tanto a ditadura militar como as gestões do PT fizeram uso político da seleção para conquistar apoio popular

PROTESTOS Manifestação no Rio de Janeiro contra realização da Copa de 2014 no Brasil: atos nas ruas pediam a construção de hospitais no lugar dos novos estádios de futebol (Crédito:Daniel Scelza)

Em 1969, o governo militar se empenhou numa cruzada pop, desde jingles nacionalistas nas paradas musicais e adesivos patriotas para colar no para-brisa do carro até a estratégia de “adotar a seleção” em busca do tricampeonato, para promover as virtudes da ditadura. O técnico João Saldanha, comentarista esportivo alçado à função de treinador da seleção, tinha histórico no Partido Comunista, algo evidentemente mal digerido pelos militares. O presidente Emilio Garrastazu Médici disse aos jornalistas que gostaria muito de ver o centroavante Dario, ídolo da torcida do Atlético mineiro, na seleção. Saldanha rebateu logo, dizendo: “Ele escala o ministério, eu escalo a seleção”. Antes do final do ano, Saldanha foi afastado do posto e o ex-jogador Zagalo assumiu o comando do time que levantaria a taça Jules Rimet pela terceira vez no México, em 1970. Os jogadores se revezaram como garotos-propaganda de eventos patrocinados pelo governo. O futebol se tornou prioridade no governo, com verba para construções de grandes estádios em capitais do Nordeste, alguns gigantes com 80 mil lugares, que rapidamente se mostraram superdimensionados para o futebol local. Em1972, foi criada a Mini Copa, que teve apenas uma edição. O governo pagou viagens e cachês de algumas das principais seleções do mundo e uma versão reduzida do mundial foi jogada no País, com a seleção ganhando mais uma taça.

A TAÇA É NOSSA Tricampeão em 1970, Pelé ergue a Jules Rimet ao lado de Médici: festa da ditadura em Brasília (Crédito:Roberto Stuckert)

A política voltaria ao caminho da seleção brasileira em 1978, na Copa da Argentina. O time era bom e tinha tudo para apagar a decepção de 1974, com a eliminação diante da Holanda. E o time foi bem, terminando a Copa invicto, mas apenas em terceiro lugar. Na última rodada da fase semifinal, o Brasil só não iria para a final contra a Holanda se a Argentina vencesse a boa equipe peruana por uma diferença de quatro gols. O time aplicou uma goleada de 6 a 0 num adversário passivo, sonolento em campo. Durante anos, a narrativa da partida foi atravessada por boatos sobre a compra do resultado. A Argentina vivia então o auge da violência de seu regime militar, naquele ano sob comando do general Jorge Rafael Videla, e a seleção entrou em campo na final com a imprensa cravando vitória do time da casa como único resultado aceitável pelo governo. A Argentina bateu a Holanda na prorrogação.

A política e o futebol voltaram a se encontrar em 2014, na segunda Copa disputada no Brasil. O País tinha vencido a disputa para sediar o evento no segundo mandato de Lula, com muita festa. Mas denúncias de superfaturamento dos novos estádios fortaleceram a oposição a Dilma Roussef, eleita em 2010. Lula também era alvo de críticas porque, ainda em seu governo, não mediu esforços para que o Corinthians, seu time do coração, erguesse estádio em Itaquera. O clube contraiu uma dívida que hoje é bilionária, com toda a ajuda possível do governo federal. A campanha “Não vai ter Copa” se tornou mote de manifestações regulares, pedindo que o dinheiro destinado aos estádios erguidos para a Copa fosse dirigido à construção de hospitais. Ronaldo Fenômeno, grande astro da conquista do pentacampeonato da seleção em 2002, assumiu papel de garoto-propaganda do governo, disparando então a frase constrangedora: “Uma Copa se faz com estádios, não com hospitais”.

Apesar do barulho nas ruas, o torneio foi realizado. Manifestações junto aos estádios foram tímidas nas primeiras rodadas. Dilma Rousseff ganhou vaias pesadas no jogo de abertura, mas a coisa passou a correr bem. E assim foi, até a acachapante derrota do Brasil nos fatídicos 7 a 1 diante da Alemanha. A decepção nacional não serviu de consolo àqueles que tinham reivindicado o cancelamento do evento. Esses também tinham sido contaminados pela energia da camisa amarela e estavam decepcionados com o hexa que não veio.