Depois da polêmica causada pelo decreto de liberação de armas, que promove a violência e facilita crimes, o presidente Jair Bolsonaro voltou atrás e estabeleceu algumas restrições para sua vocação armamentista. Nada de muito profundo: o espírito belicoso foi preservado. Mas a reação forte da sociedade, que viu um estímulo de insegurança e morte associado às novas regras, foi decisiva para que o governo recuasse em alguns pontos. Na quarta-feira 22, diante de uma saraivada de criticas, Bolsonaro publicou retificações e eliminou atrocidades contidas na lei. Mais de 20 itens do documento original foram alterados. O caso mais absurdo era o da liberação das compras e do porte de fuzis por cidadãos comuns. Pela norma anterior, por causa da falta de clareza do texto, qualquer um poderia entrar numa loja e comprar um equipamento de calibre militar. Também foi mudada a regra que permitia que jovens com menos de 18 anos (não se estabelecia uma idade mínima) pudessem frequentar estandes de tiro com autorização de apenas um dos pais. Agora, os dois responsáveis precisam autorizar e o acesso às armas só é permitido a partir de 14 anos.

Dentro de 60 dias, o Exército irá definir as armas que se enquadram nas categorias de uso restrito, permitido e não autorizado

Mudaram-se detalhes, mas não a essência da nova lei. Vinte categorias profissionais ganharam o direito de portar armas de fogo, como advogados, jornalistas, caminhoneiros, políticos eleitos e, agora, também guardas portuários. Pelo decreto, só atividades consideradas de risco e exercidas por pessoas que estão sob ameaça real podem requerer o porte. Será preciso comprovar a efetiva necessidade de seu uso. Para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o decreto, embora tenha se tornado mais palatável, continua inconstitucional e irresponsável. A maneira como está redigido causa a sensação de liberação geral, além de apreensão e medo por conta da proliferação de pessoas armadas nas cidades e no campo. Mesmo com as mudanças e restrições, ainda 19 milhões de brasileiros poderão requerer a permissão para possuir, portar armas de fogo e comprar munições. “O novo decreto segue desrespeitando a legislação vigente e repete os mesmos erros contidos no decreto 9.785/19, representando um sinal verde para que tenhamos uma escalada de crimes letais no País nos próximos meses”, disse o Fórum em comunicado.

BANCADA DA BALA Decreto é uma promessa de campanha de Bolsonaro: aumento da violência e do empoderamento da população armada

Alvo de questionamento

O Palácio do Planalto informou em nota que as mudanças foram definidas pelo presidente “a partir dos questionamentos feitos perante o Poder Judiciário, no âmbito do Poder Legislativo e pela sociedade em geral”. O Ministério Público Federal pedia a suspensão do decreto e havia pelo menos seis ações na Justiça questionando as regras. Um fator decisivo para o estabelecimento de um novo texto foi a reação de 14 governadores (13 estados mais o Distrito Federal), que se reuniram na semana passada e assinaram uma carta conjunta em que reivindicavam a revogação do decreto. Os governadores afirmam que a medida representa um sério risco à segurança pública: em vez de contribuir para deixar os estados mais seguros, teria impacto negativo sobre os índices de violência e aumentaria as chances de ocorrerem tragédias. “É fundamental aumentar os meios de controle e fiscalização para coibir desvios, enfrentar o tráfico ilícito e evitar que as armas que nascem na legalidade caiam na ilegalidade e sejam utilizadas no crime”, disseram os governadores em sua carta.

Dentro de dois meses o comando do Exército irá definir com precisão armas que poderão ser adquiridas e estabelecerá os parâmetros técnicos que definirão quais armamentos se enquadrarão nas categorias de uso restrito, permitido e não autorizado. De antemão foram diferenciadas três tipos: arma de fogo de porte, portátil e não portátil. As de porte têm dimensões e peso reduzidos e podem ser disparadas pelo atirador com apenas uma das mãos; as armas de fogo portáteis, como fuzis e espingardas, são as que podem ser transportadas por uma pessoa. As não portáteis são aquelas que, por suas grandes dimensões e alto peso, precisam ser carregadas por mais de uma pessoa com o uso de veículos, ou fixadas em estruturas permanentes. Essas são de uso exclusivo militar. O novo texto veda expressamente a concessão de porte de armas de fogo portáveis e não portáteis para defesa pessoal.

Os efeitos de uma atitude permissiva em relação ao uso de armas de fogo pelo governo podem ser exemplificados em dois crimes ocorridos nas últimas semanas, que expuseram o clima de enfrentamento instalado no País e o risco de se ter cada vez mais cidadãos armados. No primeiro, registrado em Paracatu (MG), um homem com uma garrucha invadiu a igreja Batista Shalom, no bairro Bela Vista, e matou três pessoas – antes havia assassinado a ex-esposa dentro de casa com uma faca. Rudson Aragão Guimarães, de 39 anos, ex-integrante das Forças Armadas, entrou na igreja atirando. Atingiu dois idosos na cabeça – um deles, o pai do pastor – e pegou uma mulher como refém para depois matá-la. A Polícia chegou ao local e conseguiu conter Guimarães com um tiro de fuzil no ombro. Ele está hospitalizado.

O outro crime aconteceu na cidade paulista de Santo André. O empresário Marcelo Pereira de Aguiar, de 36 anos, é suspeito de ter matado o morador de rua Sebastião Lopes, de 40 anos, com cinco tiros, em 11 de maio. O empresário havia sido detido em março, em um bar da região, por porte ilegal de armas. Alegou à polícia que era colecionador e mostrou a documentação da pistola que portava. Ele se dizia da Polícia Federal e com um revólver em punho revistava outros clientes do bar. Imagens mostram o momento em que Lopes é atingido pelos disparos. Ao que tudo indica, Aguiar o teria matado porque não gostava que ele dormisse numa obra abandonada ao lado de sua pizzaria. A polícia vasculhou a residência de Aguiar e encontrou duas armas de uso restrito. Ele está foragido.

O Ministro da Justiça, Sergio Moro, diz que as mudanças no decreto das armas contemplam as críticas da sociedade e restringem um pouco a flexibilização do porte. “Houve uma crítica de que talvez houvesse ali alguns excessos e o Planalto foi sensível a ela”. Por conta da notícia de que os fuzis estavam liberados, as ações da Taurus, fabricante brasileira de armamentos, subiram 7% na terça-feira 21. A empresa informou que foram feitas encomendas de dois mil fuzis do modelo T4 semi-automático calibre 5,56, que custa a partir de R$ 8 mil. No dia seguinte, com o novo decreto, as ações da Taurus caíram 4,35%. Chama atenção, porém, o grande interesse pelos fuzis, o que indica que muitos cidadãos têm a intenção de se armar fortemente.

Por causa da possibilidade de liberação dos fuzis, a Taurus recebeu encomendas de 2 mil unidades do modelo T4 semi-automático

Uma alteração afeta os moradores de áreas rurais. Nesse caso, ficará permitida a aquisição de armas como fuzil, carabina e espingarda. A regra vale para quem tem “posse justa” do imóvel rural, o que pode restringir os armamentos para militantes do Movimento dos Sem Terra (MST). Antes, a norma era mais abrangente e dava a possibilidade para todos os moradores de áreas rurais pedirem porte de arma de fogo. Outra mudança importante no texto foi a transferência para a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) da responsabilidade pelo controle de armas a bordo de aviões. A extensão do porte para diversas categorias profissionais levou a questionamentos do setor aéreo, preocupado com a possibilidade de embarque de pessoas armadas em aeronaves comerciais, o que poderia levar companhias de outros países a cancelarem voos para o Brasil. As regras para portar armas em vôos serão definidas pela Anac, que estabelecerá normas de segurança. Munições incendiárias, químicas e outras vedadas em acordos internacionais ficam proibidas nos aviões. Ainda bem: Gente armada em aviões com munição explosiva é coisa de terrorista.