São históricas as raízes econômicas e sociais que sustentam preconceitos no Brasil e racham o País como se Norte e Sul fossem territórios inimigos. Na maior parte do tempo invisível, existe uma muralha que se mostra nítida e robusta quando se revelam situações análogas à escravidão, como aquelas dos trabalhadores resgatados em vinícolas de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. O preconceito ficou escancarado pela fala de um vereador — no caso Sandro Fantinel, da Câmara Municipal de Caxias do Sul —, destilando ódio livremente contra esses trabalhadores, na maioria nordestinos e baianos, que nas palavras dele têm como “única cultura viver na praia tocando tambor”. Em uma frase, o ex-boia-fria e agora empresário, já notificado do pedido da cassação de seu mandato, estampou o desprezo violento por nortistas, nordestinos e negros. Tal desprezo persiste no País e se mostra cada vez mais explícito.

“Não tenho a menor dúvida de que as condições reveladas nesse caso ainda vêm da estrutura escravocrata”, afirma o antropólogo Roberto DaMatta. “Ali, o trabalhador está sempre à mercê do patrão, devendo e isolado, vivendo por cama e comida. Não tem família perto, nem pai, nem mãe, nem mulher, nem vizinho. Não se estabelece. Parece uma alma do outro mundo.” Sobre o “conselho” do vereador, para que as vinícolas deixassem de empregar baianos e procurassem argentinos (para ele, implicitamente “brancos”), DaMatta aponta um elemento óbvio no preconceito: a repulsa ao diferente.

“(…) os baianos, que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor…” (sic) Sandro Fantinel, vereador afastado de Caxias do Sul (Crédito:Divulgação)

Nos séculos XVIII e XIX, o Nordeste era o centro econômico do País, com escravizados trabalhando principalmente nas lavouras de cana-de-açúcar. Por causa do ouro, a mão de obra se deslocou para Minas Gerais. Com o fim oficializado da escravatura, o café — mais resistente e valioso — passou pelo Rio de Janeiro, centro demográfico e econômico do Império, mas seguiu para o Vale do Paraíba e o interior de São Paulo, pela altitude e melhor clima para seu cultivo. Assim, o preconceito contra negros e nordestinos foi posto à mesa daqueles que os empregavam e se enxergavam como superiores. Antonio Carlos Jucá de Sampaio, diretor do Instituto de História da UFRJ, destaca a política de Estado pelo “embranquecimento” do País, acentuada com a vinda de imigrantes europeus entre 1940 e 50 para essas lavouras e também para trabalhar com trigo e gado mais ao Sul, “que precisava ser ocupado pelas tantas disputas de terra com Argentina e Paraguai”.

SÉCULO XXI Em 2 de março, carvoeiros em situação análoga à de escravizados foram resgatados em bairro de Salvador, na Bahia (Crédito:TV ARATU)

Resgate e repúdio

Na noite de 22 de fevereiro, uma operação policial resgatou dezenas de homens em situação precária de moradia e alimentação, que trabalhavam para vinícolas e sofriam agressões físicas e até ameaças de morte. Foi preso Pedro Augusto Oliveira de Santana, o aliciador de trabalhadores pela empresa Fênix para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. Ele pagou fiança e está solto. As vinícolas contratantes da Fênix explicam-se por meio de notas e asseguram que não sabiam da situação dos trabalhadores.

SÉCULO XIX Escravos retratados na pintura do alemão Johann Moritz Rugendas, que em 1822, aos 19 anos, esteve com expedição no Brasil (Crédito:Divulgação)

Na repercussão da violência, diversas empresas, instituições e personalidades mostraram repúdio, como a rede Zona Sul, com mais de 40 mercados no Rio de Janeiro, que devolveram produtos da Aurora. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) recomendou em nota que seja averiguada a procedência de vinhos para celebração de missas, de maneira a não haver dúvidas com relação à ética de sua produção.

“A sociedade precisa entender: não é inferior aquele que sai de um lugar para outro em busca de trabalho. O preconceito surgiu na rebarba da escravatura” Roberto DaMatta, antropólogo (Crédito:FÁBIO MOTTA)

Foi “na rebarba da escravatura”, como diz DaMatta, e do preconceito contra negros que surgiu a xenofobia contra aqueles que vinham do Norte e Nordeste como mão de obra para o Sudeste e o Sul. “É o caso da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para muitos, um nordestino ter sucesso é um horror, um acinte. É preciso partir de educação mais sóbria e mais profunda para chegarmos a uma sociedade que entenda: não é inferior aquele que sai de um lugar para outro em busca de trabalho.”

Sandro Fantinel, que em 2018 desistiu de se candidatar a deputado federal “para trabalhar única e exclusivamente na campanha do então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro”, agora aguarda o destino, depois de alegar “momento de lapso mental” para seu discurso xenofóbico, dizendo que prefere ser cassado a renunciar ao mandato. Em novembro de 2022, a discriminação a nortistas e nordestinos passou a ser considerada crime de racismo, com as mesmas penas previstas, conforme foi decidido pelo STJ.

A Guerra da Secessão nos EUA e a nossa cordialidade
Por Antonio Carlos Prado

Em 1936 ocorreu uma revolução na interpretação do comportamento social do brasileiro: em Raízes do Brasil, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda desenvolve o conceito de “homem cordial”. Ao longo do tempo, o próprio autor e demais intelectuais foram aprofundando o seu significado. Se ele nasceu com pinceladas weberianas a explicar a origem do patrimonialismo, sem perder tal originalidade acabou ganhando uma dimensão psicossocial. A explicação definitiva veio do sociólogo, professor, escritor e crítico literário Antonio Candido, para quem há de fato um “fundamento sociológico” no termo “cordialidade”.

TEORIA Sérgio Buarque: explicação da passionalidade que destrói a democracia racial no Brasil (Crédito:Divulgação)

Sabendo-se que Sérgio Buarque teorizava sobre cordalis (em latim referente a coração), a cordialidade seria formada pela passionalidade explosiva — para o bem, a amizade; ou para o mal, o preconceito, por exemplo. É com essa segunda qualificação da passionalidade que se explica em parte o sentimento de repulsa que alguns brasileiros da região Sul nutrem em relação a brasileiros das regiões Norte e Nordeste – que, fugindo da miséria, migraram e desceram geograficamente o Brasil para se empregarem como mão de obra barata em seu novo destino. Vê-se a formação de uma nova espécie de casa grande e de uma nova espécie de senzala.

Se Norte e Nordeste foram decisivos em conquistas políticas, como a Independência e República, aos poucos passaram a ser esquecidos conforme o líder da política nacional se tornou Getúlio Vargas, que era do Sul. Getúlio, vivo e morto, determinou os rumos políticos do País de 1930 até o famigerado golpe militar de 1964 – que, aliás, derrubou da Presidência da República o getulista e gaúcho João Goulart. Com os olhos da elite econômica voltados para o Sul desde a década de 1930, Norte e Nordeste foram se empobrecendo e aí veio a visão preconceituosa, combatida por Josué de Castro em Geografia da fome, de que a culpa pela miséria dos nortistas e nordestinos era do clima e não de governantes. Finalmente, para essa xenofobia regional que acomete alguns indivíduos existe uma sociologia comparada: ao contrário dos EUA, onde Sul e Norte se opuseram abertamente na Guerra da Secessão, deixando claro que a nação se dividia para sempre em termos sociais, culturais, políticos, jurídicos e econômicos, cá no Brasil essa guerra é velada, camuflada em cordialidade na forma de amabilidade, e somente vez ou outra exposta à luz do dia em passionalidade a traduzir preconceito.

CENA Guerra Civil nos EUA: fraturas étnicas, jurídicas, políticas e sociais expostas até hoje desde 1865 (Crédito:Divulgação)