Um ambiente cada vez mais orwelliano está se estabelecendo na Caxemira sob administração indiana, onde empresas e comércios são obrigados desde abril a se equiparem com sistemas de vigilância por vídeo.

Como no “Big Brother”, as gravações das câmeras de vigilância devem ser fornecidas após simples solicitação da “polícia ou outro órgão de aplicação da lei”, estipula um decreto que entrou em vigor em abril.

Trata-se, segundo seus próprios termos, “dissuadir criminosos e elementos antissociais e antinacionais”.

Segundo os defensores dos direitos humanos, a medida visa transformar a Caxemira indiana em um dos territórios mais militarizados do mundo, um Estado sob vigilância.

Grupos separatistas lutam contra as forças indianas há décadas, pedindo a independência da Caxemira ou a fusão com o Paquistão, que controla parte do território.

A Caxemira está dividida entre a Índia e o Paquistão, países que desde a sua independência em 1947, reivindicam a soberania sobre este território do Himalaia, de maioria muçulmana.

Desde uma insurreição em 1989 na parte administrada pela Índia, a violência causou dezenas de milhares de mortes.

– Multa ou prisão –

Quem não respeitar o decreto está sujeito a multa ou até prisão. E as instalações – com infravermelho, capacidade de armazenamento de 30 dias, boa qualidade de imagem – são pagas pelos próprios comerciantes.

Esses sistemas de videovigilância que respondem às exigências do governo podem custar até 40.000 rúpias, mais de 500 dólares, segundo comerciantes de Srinagar, a principal cidade do território.

“As especificações (do sistema) mencionadas no decreto me impossibilitam de pagar esses preços, em um momento em que os negócios estão em baixa”, disse à AFP Bilal Ahmed, vendedor de sorvete no distrito comercial de Srinagar.

As repetidas solicitações da AFP às autoridades para falar sobre a questão da legalidade dessas medidas permaneceram sem resposta.

Mas, segundo vários advogados questionados pela AFP, o decreto não tem base legal.

“Mas o fato de o governo descrever essa questão como relacionada à segurança da Caxemira é superior a qualquer outra consideração”, ressaltou um deles, pedindo anonimato.

As câmeras de segurança já cobrem quase todas as ruas e vielas de Srinagar e outras cidades do território.

Em agosto de 2019, o governo nacionalista hindu de Narendra Modi revogou abruptamente a autonomia parcial do território para colocá-lo sob sua autoridade direta.

Milhares de pessoas, incluindo líderes políticos e militantes, foram presos. A Internet e as comunicações telefônicas foram cortadas, isolando a Caxemira indiana do resto do mundo por seis meses.

– “Preocupante” –

Desde então, as leis sobre detenção administrativa são usadas rotineiramente e podem efetivamente contornar os recursos judiciais.

Alguns suspeitos permanecem, às vezes por anos, em prisões indianas, muitas vezes sem julgamento ou recurso possível.

Os moradores, incluindo jornalistas, são chamados regularmente para “verificações de antecedentes”. Os soldados confiscam os telefones celulares dos habitantes para monitorar suas atividades.

As técnicas de espionagem são cada vez mais sofisticadas, com as forças de segurança aperfeiçoando sua vasta rede de câmeras.

De acordo com um documento oficial consultado pela AFP, essa rede deverá incluir um sistema de vigilância ultramoderno com 1.100 câmeras equipadas com recurso de reconhecimento facial e um centro de comando centralizado para controle ao vivo pela polícia.

O decreto de videovigilância nos comércios representa “uma evolução preocupante” para os moradores da Caxemira, disse Aakar Patel, ex-diretor da Anistia Internacional na Índia, pois legitima “uma vigilância completa de sua vida cívica, ameaçando seus direitos de privacidade, liberdade de reunião e dignidade”.