Ilustração sobre fotos: Fábio Motta/Estadão Conteúdo/AE; Kleitonamprim/Uol/Folhapress; Divulgação; Agência Senado

Poucos nomes encarnam tão bem a degeneração política em Brasília quanto Roberto Jefferson. É uma espécie de Fênix fisiológica. Como a ave lendária, tem a habilidade extraordinária de renascer das cinzas. Foi da tropa de choque do governo Collor, no início dos anos 1990, quando o ex-presidente já enfrentava o colapso do seu governo, abandonado pelos políticos, rejeitado pela sociedade e encurralado pela Justiça. A segunda vida de Jefferson foi no governo Lula, quando integrou o condomínio de partidos comprados com dinheiro público, em pagamentos mensais, para dar sustentação ao petista.

NAMORO FIRME O senador Ciro Nogueira (PP) participa das viagens de Bolsonaro para inaugurar obras (Crédito:Divulgação)

Trombou com o capitão do esquema, José Dirceu, e detonou o escândalo do Mensalão. Transmutou-se em uma Nêmesis, como uma figura mitológica devotada a exterminar o petismo — mesmo que isso tenha levado à sua cassação e à cadeia. Este ano, cativou Bolsonaro ao fazer uma defesa apaixonada do presidente, que estava acuado em sua cruzada antidemocrática contra o Congresso e o STF. Bolsonaro assistiu a cena pela TV. Encantado com o que viu, espalhou a manifestação do petebista. Na sua cabeça, essa foi a centelha para refundar seu governo, entregando-o ao Centrão. Já Jefferson iniciava sua terceira vida política. Passou a integrar a nova tropa de choque bolsonarista, inclusive posando com armas.

Esse é o novo retrato do governo Bolsonaro. O Centrão passou a comandar a interlocução com o Congresso e, aos poucos, assume a própria máquina do governo. Isso levará a um novo loteamento de cargos e à volta da multiplicação dos ministérios, recurso banalizado no governo Dilma. A nova pasta do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior já foi oferecida ao presidente do Republicanos, Marcos Pereira. Devem renascer os ministérios da Previdência e do Trabalho — este último é o objeto de desejo do próprio Jefferson. O Ministério das Comunicações já voltou, entregue a Fábio Faria (PSD). Dnocs, Telebras, Ministério da Saúde e Funasa foram ocupados por nomes indicados pelo grupo, assim como o FNDE, que, sozinho, tem um orçamento de R$ 54 bilhões. Além de retalhar a pasta de Paulo Guedes, a turma já reforça a pressão pela guinada na economia, com a flexibilização do teto de gastos, ameaçando o ajuste fiscal.

Apoiam a volta do projeto desenvolvimentista, com a ampliação dos gastos públicos abastecendo programas populistas (como a agenda de inaugurações de Bolsonaro nos rincões) e assistencialistas (como o Renda Brasil). A subordinação do ministro da Economia ao grupo é evidente. Ganhou ares de pastelão em uma coletiva que abordava o fim do auxílio emergencial. O novo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), mostrou na prática como será a nova articulação política ao puxar pelo braço o titular da Economia e interromper a entrevista em meio a repórteres incrédulos. “Combina primeiro, anuncia depois”, ensinou. Como o grupo se alimenta de verbas e cargos públicos, outro projeto vendido na campanha de Bolsonaro já foi rifado: a privatização. A venda da Eletrobras, pilar do processo de desinvestimento, foi para calendas. Já a Codevasf é representativa da volta escancarada no aparelhamento das estatais, com a criação de cargos para acomodar os novos aliados.

Combate à corrupção ameaçado

INSPIRAÇÃO Jair Bolsonaro assiste Roberto Jefferson defender seu governo. Depois disso, incorporou o Centrão ao governo (Crédito:Divulgação)

Mais do que tudo, o acordo com o Centrão significa abandonar escancaradamente o combate à corrupção. Bolsonaro deixou claro na última quarta-feira, 7, sua estratégia de combate aos crimes de colarinho branco. “É uma satisfação que eu tenho, dizer para essa imprensa maravilhosa nossa que eu não quero acabar com a Java Jato. Eu acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”, disse sem pudor. O ex-ministro Sergio Moro e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo), defenestrados pelo presidente, protestaram. Mas não foi uma mudança de rota.

“Paradoxalmente eleito na esteira da Lavo Jato, esse é o governo que mais desmantelou o arcabouço de combate à corrupção construído nos últimos 20 anos. É uma aliança com notórios investigados “, diz Randolfe Rodrigues (Rede), líder da oposição no Senado. Ela inclui a expansão da “República da tubaína”, em referência à bebida artificial e açucarada que o presidente se orgulha de tomar com os amigos do peito. Fez parte desse movimento a nomeação do desembargador Kassio Nunes Marques para a vaga de Celso de Mello no STF, que teve o patrocínio do senador Ciro Nogueira (PP). O juiz piauiense é a grande esperança do Centrão para desequilibrar o jogo no STF e enterrar definitivamente a Lava Jato.

Por isso sua indicação foi saudada com alegria pelo notório Renan Calheiros (MDB), que se alinhou com todos os governos desde Collor e começa a se converter ao bolsonarismo. Assim como o presidente, ele traduziu de forma cristalina o novo espírito de combate à corrupção em Brasília. “O presidente já encadeou várias medidas, desde o Coaf, a questão da Receita, a nomeação do Aras para a chefia do Ministério Público, a demissão do Moro e, agora, a nomeação do Kassio. É o grande legado que ele pode deixar para o Brasil: o desmonte desse sistema”, afirmou o senador, que enfrenta pelo menos 17 processos no STF. O líder na Câmara, Ricardo Barros, que já exerceu essa função ou foi ministro de todos os presidentes desde FHC, concorda. Já disse que a Lava Jato quebrou o País. “A promessa de combate à corrupção de Bolsonaro nunca existiu de fato”, diz o cientista político Claudio Couto (FGV-EAESP).

“Eu acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”
Jair Bolsonaro, presidente

Nogueira, presidente do PP, apoiou a indicação de seu conterrâneo ao STF, mas não foi o único a celebrar a nomeação. O nome do desembargador foi levado ao presidente por Flávio Bolsonaro e por Fred Wassef, ex-advogado do próprio presidente que foi flagrado ao encobertar o ex-PM Fabrício Queiroz em um escritório em Atibaia (SP). Para comemorar o arranjo que levará um nome bolsonarista para o STF, foi organizado um convescote pelo ministro Dias Toffoli, que reuniu ainda Gilmar Mendes e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. A indicação é mais um sinal de promiscuidade entre os poderes. Na presidência do STF, Toffoli celebrou um pacto político com Bolsonaro que rifava a independência do Poder Judiciário. Fora da cadeira de presidente, costura um acordão que pode garantir na Corte apoio às causas que mais interessam ao mandatário: proteger ele e os filhos, que são investigados em vários inquéritos, de interferência na PF à rachadinha no Rio de Janeiro, passando pela participação em atos antidemocráticos e a divulgação de fake news.

O novo arranjo já dá resultados. O deputado Arthur Lira foi beneficiado em setembro por uma auxiliar de Aras, que recomendou a rejeição de uma denúncia contra o líder do Centrão por propina de R$ 1,6 milhão na Lava Jato. E o rearranjo institucional continuará. Até o fim de seu mandato, o presidente terá direito a indicar pelo menos 13 nomes para o Poder Judiciário, inclusive mais um ministro do STF. Serão dez nomes nas cortes superiores e quatro nos Tribunais Regionais Federais. Indiferente à péssima repercussão do encontro que festejou a mudança no STF, Bolsonaro respondeu às críticas: “Preciso governar. Converso com todos em Brasília. Um abraço”.

Briga pela direção do Congresso

O ESCOLHIDO Arthur Lira (gesticulando), do PP, é o candidato de Bolsonaro para presidir a Câmara em 2021 (Crédito:Pedro Ladeira/Folhapress)

A metamorfose em Brasília também atinge o Congresso, cuja direção será renovada em fevereiro de 2021. Bolsonaro sonha em garantir o controle da pauta legislativa na metade final de seu mandato, assim como afastar definitivamente o fantasma do impeachment. O seu candidato para presidir a Câmara em 2021 é justamente Arthur Lira. Já para a presidência do Senado, o presidente gostaria de ver a recondução de Davi Alcolumbre (DEM), que ainda tenta driblar a regra constitucional que impede a recondução em meio de mandato. Essa briga está por trás da atual disputa pela Comissão Mista de Orçamento, que determinará o Orçamento de 2021. Bolsonaro quer garantir o espaço do Centrão e evitar que o grupo de Rodrigo Maia (DEM) e Baleia Rossi (MDB) se fortaleça, unindo-se à oposição no Congresso para conquistar a direção da Câmara no próximo ano. Ambos estão unidos na campanha municipal paulistana de Bruno Covas (PSDB), que foi articulada por João Doria — na prática, esse é o embrião da candidatura do governador de São Paulo para a campanha presidencial de 2022. Bolsonaro sabe disso, e usa o Centrão para frear a ascensão do paulista.

Para recompor seu governo com o Centrão, Bolsonaro precisou jogar ao mar apoiadores de primeira hora. Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus em Cristo, reagiu enfurecido à indicação de Marques. “O PT, toda esquerda, o centrão, os corruptos e todos os que são contra a Lava Jato agradecem a nomeação de Bolsonaro para o STF”, disse. A líder das patrulhas extremistas bolsonaristas, Sara Winter, divulgou um vídeo indignada: “Não reconheço Bolsonaro. Não sei mais quem ele é. O homem que eu decidi entregar meu destino e vida para proteger um legado conservador. Não aguento mais”, afirmou. O guru Olavo de Carvalho está afastado, depois de ameaçar “derrubar o governo”, e seu pupilo Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação, refugiou-se em um emprego em Washington, no Banco Mundial.

CABRESTO O líder na Câmara, Ricardo Barros (PP), interrompe coletiva do ministro Paulo Guedes e mostra quem manda na articulação política (Crédito:Wallace Martins/Futura Press)

O jogo agora é com os profissionais da velha política. E, ao contrário do que vendeu ao eleitorado, Bolsonaro se sente à vontade entre eles. Ele pertenceu historicamente ao grupo nos seus 27 anos de Câmara, apesar de sempre ter sido um elemento marginal, um ator do baixo clero. Já o Centrão, com seu antigo protagonista, deixou de ser um apoiador do governo de plantão para se tornar um acionista do poder. Desde a redemocratização, nenhum presidente foi tão refém do grupo. Resta saber se ele vai garantir a aprovação das pautas de seu interesse. “O governo Bolsonaro aprovou muito mais quando não tinha o Centrão do que agora, que tem base”, diz o deputado Marcelo Ramos (PL), que faz parte de um partido do grupo mas atua de forma independente. Ramos, que é ele mesmo candidato à presidência da Câmara em 2021, critica o atual arranjo bolsonarista e diz que o Parlamento está dividido por causa disso. A união com o Centrão antecipou a briga pela presidência das casas legislativas. “A Câmara está dividida por causa do processo sucessório. Quem paga a conta é o País. Tudo o que é importante está parado”, afirma.

O Centrão surgiu na Constituinte, quando o governo Sarney passou a distribuir rádios e TVs para cooptar aliados. Desde então se enraizou e espalhou. No governo Bolsonaro, o grupo fisiológico reúne mais de 200 deputados e une pelo menos dez siglas (PP, PL, PSD, Solidariedade, PTB, Avante, PROS, Republicanos, Patriota e PSC). “O Centrão teve participação em todos os governos desde 1985. Era fisiológico, do toma lá, dá cá. Evoluiu. Hoje é uma associação de perseguidos pela Justiça. É um grupo que se tornou predatório das estruturas do poder. Tem uma relação diferente em relação aos governos anteriores. O PSDB de Fernando Henrique tinha o controle.

“O Centrão é uma associação de perseguidos da Justiça. É um grupo
que se tornou predatório do poder”
Randolfe Rodrigues, senador

O governo Lula também usava até os limites do que queria. No momento atual, o Centrão manda diretamente no governo. São protagonistas centrais”, diz o senador Randolfe. O professor da FGV-EAESP acha que o casamento de Bolsonaro com o Centrão era inevitável. “Não é uma escolha, é uma contingência. O presidente não podia continuar na sua trajetória. Fez isso porque estava acuado, com inquéritos contra ele e os flhos”, diz Claudio Couto. Ele considera até que há benefícios nesse casamento de conveniências, já que foi afastado o risco de aparelhamento com os radicais, assim como a ameaça às instituições.

A própria nomeação do desembargador Kassio Marques para o STF seria um sinal de moderação. “Mas tenho dúvidas sobre quanto tempo isso vai durar. Quando Bolsonaro estiver seguro, pode retomar seu estilo disruptivo e perder o apoio que conquistou.” Mas o Centrão não se importa com o destino do governo Bolsonaro. Como já provou desde os anos 1980, está pronto para enfrentar o eventual naufrágio bolsonarista. Sabe que poderá contar com novos governantes em apuros para voltar ao poder.


O candidato fake

BASTIDORES Kassio Nunes Marques procura senadores para garantir apoio

A nomeação do desembargador Kassio Nunes Marques, do TRF-1 para o STF, estampou mais uma vez, ainda que não fosse necessária, a improvisação do governo Bolsonaro. Recém-anunciado, Marques precisou sair a campo justificando as inconsistências de seu currículo, seguindo o mesmo roteiro de Carlos Decotelli, o ministro da Educação abatido antes da posse. O desembargador diz que concluiu pós-graduação na Universidad de La Coruña, na Espanha, mas foi desmentido. Não é só. A sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Autônoma de Lisboa, tem trechos idênticos a artigos de outro autor. É um constrangimento para o STF, que nunca passou por um episódio semelhante.