Ministério das relações exteriores de Israel

Foi uma viagem patética e que mostrou mais uma vez que o governo de Jair Bolsonaro não tem direção e transformou o combate à pandemia num delírio negacionista. Em vez de concentrar esforços na luta diária contra a doença e comprar vacinas, o presidente inventou uma missão diplomática para Israel, formada por nove membros do governo, incluindo seu filho 03, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e chefiada pelo chanceler Ernesto Araújo, para conhecer um medicamento antiviral chamado EXO-CD24, até agora mal testado e sem qualquer comprovação científica. O spray nasal que fascina os bolsonaristas é uma espécie de nova cloroquina que Bolsonaro quer transformar em uma panaceia. Apesar de suas pretensões científicas, no grupo brasileiro só havia dois médicos, Hélio Angotti Neto, do Ministério da Saúde, discípulo do guru Olavo de Carvalho, sujeito que ultraja a ciência diariamente, e Marcelo Marcos Morales, funcionário do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTIC). Os demais integrantes da comitiva eram palpiteiros sem especialidades técnicas querendo beijar a mão do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.

Apesar de poder trazer resultados num futuro distante, o spray, até agora, só passou por testes pouco significativos. Há uma desproporção alucinada entre o interesse demonstrado pelo governo brasileiro e a realidade do medicamento, convertido em fantasia bolsonarista para criar uma agenda positiva. A viagem a Israel tem tudo para se transformar num desperdício de dinheiro sem qualquer resultado prático. Com as bênçãos presidenciais, a missão deixou o Brasil sábado, 6, todos sem máscaras, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB). Domingo, mal chegando em Tel-Aviv, tomaram uma invertida. Achando que entrava numa festa clandestina na churrascaria, Araújo, no primeiro encontro com o chanceler israelense, Gabi Ashkenazi, foi repreendido pela falta do equipamento de proteção. Constrangido, deu um sorriso maroto e foi obrigado a se proteger. A advertência veio de um mestre de cerimônias do governo israelense, que convidou o brasileiro para uma foto ao lado de Ashkenazi. “Convidamos os dois ministros para uma foto juntos. Nós precisamos que coloque a máscara”, intimou o funcionário. Araújo respondeu “Oh, yes!” e botou o equipamento. É uma situação vexatória que expõe a diplomacia brasileira ao ridículo e mostra, mais uma vez, que o Brasil é comandado por um grupo de irresponsáveis.

“Enfia no rabo”, disse o deputado Eduardo Bolsonaro em resposta às críticas feitas pela imprensa ao fato de a comitiva enviada a Israel não ter usado máscara

Além de Araújo e do filho 03, participaram da comitiva o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), conhecido como Hélio Negão, Fábio Wajngarten, ex-secretário de comunicação, Filipe Martins, assessor da presidência da República, embaixador Kenneth Félix Haczynski da Nóbrega, Marcelo Morales, secretário de Políticas para Formação e Ações Estratégicas do MCTIC, Max Guilherme Machado de Moura, ex-policial do Bope e assessor direto de Bolsonaro, e o médico Angotti Neto. Ele e Marcelo Morales eram os únicos ali capazes de diferenciar um vírus de uma bactéria. Ao longo da semana, Eduardo Bolsonaro tratou de elogiar a importância dos encontros presenciais e de exaltar as qualidades do spray nasal. Adiantou também que o Brasil, por causa de sua miscigenação e diversidade étnica, foi oferecido como um campo de testes para o produto – não há necessidade de oferecimento, o Brasil é um natural e tradicional campo de provas clínicas da indústria farmacêutica. A inutilidade da viagem para Israel, se for comprovada, pode enquadrar seus participantes na Lei de Improbidade Administrativa, que existe para punir gastos absurdos.

VERGONHA Ernesto Araújo é advertido por não usar máscara no encontro com o chanceler israelense, Gabi Ashkenazi: falta de diplomacia (Crédito:Divulgação)

Outro problema que circunda os aloprados brasileiros é a propaganda ilegal e antiética de medicamentos. Se um camelô promovesse a cloroquina como faz Bolsonaro atualmente já estaria preso ou internado em um manicômio. O mesmo, agora, os “estrategistas” do governo ameaçam repetir com o spray nasal. Fazer publicidade de produtos farmacêuticos sem comprovação científica é charlatanismo e crime. Em seu Twitter, como era de se esperar, Eduardo Bolsonaro festejou a caravana do spray. “Brasil é prioridade para Israel”, afirmou. “Fomos a Israel, país referência no combate ao coronavírus e retornamos com cooperação no desenvolvimento de vacinas e medicamentos junto aos mais renomados institutos.” Além de oferecer a população brasileira para a 2a e a 3a fases de testes do EXO-CD24, que está sendo desenvolvido no Hospital Ichilov, em Tel-Aviv, a comitiva brasileira também fez contatos com o laboratório Hadassa, com o qual assinou um documento para cooperação nos testes de outro remédio para ser usado em casos moderados e graves de Covid-19, chamado Allocera, e no desenvolvimento de vacinas de produção própria. A Assessoria Especial de Assuntos Internacionais da Presidência da República divulgou uma nota em que diz que “o governo brasileiro está levando resultados bastante concretos na bagagem” que traz de Israel.

BEIJA-MÃO Eduardo Bolsonaro encontra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu: Brasil tem interesse desproporcional pelo spray nasal (Crédito:Divulgação)

Apesar da animação da comitiva brasileira com o spray, Ronni Gamzu, CEO do hospital Ichilov, também chamado de Centro Médico Sourasky, onde o medicamento é testado, indicou que a situação é muito diferente do que Araújo e Eduardo Bolsonaro querem fazer crer. Gamzu expôs a realidade da invenção para os membros da comitiva. Segundo ele, drogas antivirais como spray são importantes, mas não superam a vacinação em massa como arma contra a pandemia. O médico israelense disse também que há um entusiasmo do Brasil com o remédio que ele não vê em outros países. Gamzu precisa saber, porém, que esse entusiasmo se limita aos membros do governo Bolsonaro, um grupo pouco afeito às discussões científicas e dado a deslumbramentos momentâneos e tentativas de usar a doença politicamente. “Com todo respeito aos medicamentos antivirais, as doenças virais só acabam com vacinas”, explicou Gamzu, didaticamente. Ele afirmou também que não adianta esperar uma solução rápida e que o desenvolvimento do spray pode demorar meses ou anos. É evidente que a caravana de Araújo não quer acreditar nisso e espera tirar um coelho da cartola.

Repercussão negativa

Em uma live no meio da semana, Eduardo Bolsonaro apareceu revoltado com a repercussão negativa da viagem. “Então onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando. Acho uma pena que essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara: ‘Ah, a máscara, está sem máscara, está com máscara’. Enfia no rabo gente, porra”, disparou com grosseria. Mas o fato é que a missão brasileira para Israel é mais uma tentativa diversionista de mudar o foco da discussão do combate à pandemia e criar fatos novos e distantes do que realmente importa: a compra e distribuição de vacinas, algo que o governo não consegue fazer. Enquanto poderia direcionar seus esforços e dinheiro para a compra de imunizantes eficazes já testados mundo afora, Bolsonaro e sua trupe apostam num produto para o futuro distante, testado, até agora, em apenas 30 pacientes, tentando enganar o povo e achando que os brasileiros são idiotas. Tratam como intercâmbio tecnológico o que não passa de propaganda de uma encenação populista. Se quisesse realmente funcionar no combate à pandemia, o governo faria seus contatos de alto nível com discrição e entregando resultados antes de conversa mole. Os brasileiros estão esperando atitude, querem parar de morrer, querem tomar vacina, mas Bolsonaro não tem sentimentos e acha que é tudo “mimimi”. Não bastasse o estrago local, quer também aniquilar a imagem internacional do Brasil lançando ao mundo um grupo de burocratas idiotizados. Com suas viagens, o time de malucos de Bolsonaro, que despreza o uso de máscaras e o distanciamento, tende a emporcalhar a diplomacia brasileira.

ABERRAÇÃO Jair Bolsonaro, camelô da cloroquina (Crédito: Frederico Brasil)

A farsa da cloroquina
Governo Bolsonaro gastou até agora R$ 90 milhões com medicamentos inúteis

No futuro, a exaltação da cloroquina feita por Jair Bolsonaro será considerada uma das maiores aberrações na área da saúde já promovidas por um presidente da República. Mais grotesca ainda será a lembrança da promoção do chamado “tratamento preventivo”, pedra de toque da gestão atabalhoada do ministro Eduardo Pazuello, que envolve um conjunto de remédios ineficazes contra o coronavírus, alguns deles com potencial para causar morte súbita. Esse coquetel tem sido oferecido para pacientes da Covid-19 de maneira criminosa. Contra todas as evidências científicas, o governo gastou, até agora, cerca de R$ 90 milhões com medicamentos inúteis como cloroquina, azitromicina, ivermectina e antigripais para combater o coronavírus. Recursos jogados no lixo. Com o mesmo dinheiro, poderiam ter sido compradas 4,5 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca ou 1,8 milhão de doses da Coronavac. Mas Bolsonaro insiste na cloroquina contra todas as provas técnicas e as evidências científicas.