Em tempos de extremismos, infelizmente, a ignorância faz sucesso. Comum em governos ditatoriais, o recente expurgo de livros da Fundação Palmares, liderado pelo seu presidente, Sergio Camargo, seguidor fiel de Jair Bolsonaro, contraria um ideal básico da democracia: a liberdade de expressão. Intitulado “Retrato do acervo: três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares”, o relatório de 74 páginas regulamenta uma caça às bruxas para retirar cerca de 5.300 títulos da biblioteca da fundação. No total, o espaço possuí 9.565 livros.

Consta no documento que 5.165 itens, 54% da coleção, são de temática alheia à negra e não cumprem a missão da entidade por reforçarem a “sexualização de crianças, ideologia de gênero, pornografia, erotismo, manuais de guerrilha, greve e revolução e bandidolatria”. Autores revolucionários como Karl Marx, Max Weber, Erick Hobsbawn, Émile Durkhein, Mao Tsé Tung, Josef Stalin e o historiador brasileiro Caio Prado Jr foram repudiados, portanto, serão doados. Procurada pela ISTOÉ, a entidade não quis se pronunciar sobre o caso.

DEBATE Marcelo Freixo (no alto) é um crítico radical de Sergio Camargo: civilidade x bolsonarismo (Crédito: Pedro Ladeira)

Para Maria Cecília Pilla, doutora em história da PUC-PR, a ação ameaça a democracia. “Os regimes de força não permitem que as pessoas pensem diferente. Querem um pensamento só”, diz. “Caçar os intelectuais é uma característica dos regimes não democráticos”. Em suas redes sociais, Camargo condena esquerdistas, comunistas e quem quer que vá contra a “censura velada” do governo. Inclusive, é contra e ataca pessoas do movimento negro, que não são de extrema direita. “Exorcizei o marxismo da Palmares. O vitimismo também será exorcizado”, declarou no twitter.

Recentemente, o deputado Marcelo Freixo (PSB) entrou com um pedido de liminar na Justiça Federal de Brasília para barrar a retirada dos materiais da Fundação Palmares por temer o impacto na cidadania. “Tenho denunciado Camargo desde que ele assumiu”, diz. “Ele tem apenas dois papeis ali: destruir a instituição e usar o cargo para disseminar discursos de ódio e incitar a base mais fanática do bolsonarismo”. Após saber da liminar, Camargo disse que os livros são “a cara de Freixo e se pudesse doaria todos a ele”.

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Ameaça à democracia

Historicamente, quando o governo decide o que pode ou não ser lido, de certa forma, controla a sociedade. Em meados de 1940, sob a batuta de Adolf Hitler, livros de autores como Karl Marx e Max Weber foram queimados em praças públicas na Alemanha. “Os livros sempre foram uma ameaça para instituições controladoras porque uma população livre é perigosa”, destaca o especialista em linguística Mario Pires de Moraes, do Centro Interdisciplinar de Estudo África-Américas (CIEAA). Freixo denuncia que o relatório é “parte de um projeto para corroer as instituições por dentro” e que o governo está repleto de pessoas despreparadas para suas funções, como os ex-ministros Eduardo Pazzuelo e Ricardo Salles, que acaba de deixar o cargo.

No caso da Fundação Palmares, a situação fica mais estranha, pois o coordenador da entidade, Marco Frenette, já foi editor da aclamada revista Caros Amigos, veículo com viés de esquerda. Ou seja, em teoria, mesmo no lado oposto agora, deveria respeitar a diversidade de pensamentos, mas não é o caso. “Montaram uma escola de delinquência e criminalidade esquerdista dentro da Fundação Palmares”, disse, ao apoiar o expurgo de livros. A lógica bolsonarista de Sergio Camargo visa um Brasil cada vez mais antidemocrático e desafia a civilidade popularizada pelos gregos, autores do conceito de democracia. A liberdade intelectual e de expressão no Brasil está sob risco. É preciso ficar alerta contra os promotores da ignorância.

especialista em linguística

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