Apesar de todas as tentativas para mudar a imagem do Festival de Gramado, o evento na serra gaúcha permanece aquele que, no País, mais se liga no ritual do tapete vermelho. Em princípio, nada mais alheio ao espírito de Gramado que o longa A Bruta Flor do Querer, de Andradina Azevedo e Dida Andrade, que concorreu aos Kikitos em 2013. Produção barata, de jovens diretores, sem elenco conhecido – os próprios diretores são os protagonistas -, tudo conspirava contra A Bruta Flor. O filme parecia que só ia fazer figuração em Gramado, mas a aposta do programador Rubens Ewald deu certo. A Bruta Flor venceu os Kikitos de direção e fotografia. Sobre o segundo prêmio, os diretores fazem uma revelação curiosa.

A Bruta Flor do Querer estreou na quinta, 7, na cidade. Os dois anos decorridos desde a premiação em Gramado foram consumidos – mais de um, com certeza – na liberação das músicas que compõem a trilha. Em Gramado, o filme foi exibido na raça, sem liberação. Quando o filme armou um bochincho, outros diretores e produtores concorrentes tentaram desautorizar A Bruta Flor, dizendo que jamais chegaria ao circuito. “Foi duro, mas chegamos”, comemora Andradina. “Mas não foi como esperava. Tinha a fantasia de que conseguiríamos chegar ao Caetano (Veloso), mostrar o filme, conversar como bróders. Pagamos bem menos que os caras costumam cobrar, e já foi uma vitória, mas eles são blindados, meu. A gente nem chega perto.”

Andradina e Dina assumem que fizeram um filme confessional. Começaram a escrever em 2010, filmaram em 2012. Digital, claro, sem orçamento. Dos R$ 100 mil investidos – a duras penas – na produção, R$ 50 mil foram para a trilha. “Muita gente nos ajudou na concretização desse sonho. Uns trabalharam de graça, outros apoiaram.” Na quarta à noite, ocorreu a pré em São Paulo. “Entramos pela madrugada e terminamos na sarjeta, na Augusta, tomando cachaça com os amigos.” A Bruta Flor é sobre um garoto que sai da faculdade, formado em cinema. O mercado não o absorve, ele vai filmar casamentos. Tem uma relação complicada, vai ao fundo do poço. Dida é quem faz o papel. Andradina é o amigo que lhe dá sustentação. “A Bruta Flor é sobre nós, a nossa geração. O próximo será sobre nossos pais”, anuncia Dida.

Um crítico, dos bons, reclamou da metalinguagem – filme dentro do filme, sobre diretor. Evocou Lacan (esse crítico) – a metalinguagem não existe. Ué, e Jean-Luc Godard? E Ingmar Bergman? A Bruta Flor tem esse lado Godard, nouvelle vague, mas os tormentos do amor, a perplexidade de um garoto contemporâneo diante do desafio proposto pela mulher, isso é puro Bergman. É a melhor parte de A Bruta Flor, embora o diálogo dos garotos seja muito vivo. Às vezes, não dizem coisa com coisa, falam boçalidades. Assim como a metalinguagem, outros críticos investem contra o machismo. As feministas bradam de seus saltos altos. A correção é inimiga da arte. Com os defeitos que possa ter, A Bruta Flor possui uma grande e bela qualidade – é sincero. E isso nos remete a Gianfranco Rosi, o diretor do deslumbrante Fogo no Mar, que na quinta, 7, deu entrevista ao Estado, na inauguração do É Tudo Verdade.

Para Rosi, não existe a divisão entre documentário e ficção. Tudo é filme, tudo é cinema e a divisão que conta é entre falso e verdadeiro. A Bruta Flor é verdadeiro. Boa parte do filme passa-se on the road, os protagonistas no carro, falando sem parar. Ou você entra, ou não. Só para lembrar, Estrada para Ítaca, que foi o cartão de apresentação do coletivo Alumbramento, do Ceará, também se passava na estrada, no carro, sobre um grupo de amigos cachaceiros que jogavam conversa fora e, numa cena-chave, chegavam à encruzilhada de Glauber Rocha. Para onde vai o cinema? Andradina e Dida admitem ter lido Glauber e André Bazin, mas não querem aparentar o que não são. Está tudo lá, mas do jeito simples (e ousado) deles. O sexo (explícito) faz parte do jogo. A metalinguagem? “Só se preocupa com ela quem é do ramo. Nas sessões com público, a questão do trabalho, o cineasta desempregado, passa naturalmente, como a de qualquer profissão. As pessoas até acham engraçada a filmagem do casamento.” A propósito, o casamento não foi encenado. Era real. Uma contribuição das teorias de Bazin.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.