O presidente Jair Bolsonaro visitou seu colega russo Vladimir Putin há cinco meses. Uma piada surgida à época na internet ainda arranca risada:

— Você já leu Tolstoi? — pergunta Putin a Bolsonaro. 

— Não, mas vi o desenho.

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Em português claro e castiço: Bolsonaro, embora deslustre o nome do Brasil no exterior, tem o direito de viver na ignorância e desprezar a literatura — e o mesmo vale para seus seguidores fanáticos. Eles não possuem, no entanto, a discricionariedade de ofender um dos maiores templos da cultura bibliográfica e documental brasileira e portuguesa. Trata-se da Biblioteca Nacional, na tradicional região histórica da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Em seu prédio, que exibe características do neoclássico mescladas com elementos de art nouveau, ela guarda cerca de nove milhões de itens e é considerada pela Unesco um dos dez melhores acervos existentes no mundo — o principal da América Latina. Deve tal honraria, sobretudo, aos incunábulos que possui. Faz vizinhança, entre outros centros culturais igualmente importantes, com o Teatro Municipal e o Museu Nacional de Belas Artes.

Em português claro e castiço: é ato ofensivo ao Brasil e a Portugal, principalmente no ano em que se comemora o bicentenário da Independência, condecorar com a medalha da Ordem do Mérito do Livro um cidadão que faz apologia de regimes autocratas e ditaduras militares, que defende a censura, que professa o antirrepublicanismo e a antidemocracia. Mais: tal cidadão recebeu sentença penal condenatória por ameaçar membros do Poder Judiciário, e só não está preso porque Bolsonaro lhe concedeu o benefício da graça. Pois bem, o cidadão em pauta é o deputado federal Daniel Silveira. Pois bem, ele foi condecorado pelo presidente da Biblioteca Nacional, Luiz Carlos Ramiro Junior. Pois bem, Ramiro Junior chegou ao cargo pelas mãos de seu antecessor, Rafael Nogueira. Pois bem, Nogueira presidiu a entidade sob o auspício do já falecido filósofo de internet Olavo de Carvalho. Está tudo explicado. E, esclarecendo a piada, pois clareza é boa fé, nenhum livro da monumental e imortal obra de Liev Tolstói foi adaptado para desenho animado.

Em português claro e castiço: a Biblioteca Nacional merece respeito, o condecorado não. Nem um guindaste é capaz de elevar Silveira ao patamar de Carlos Drummond de Andrade ou de Gilberto Freyre, que no passado foram agraciados, entre tantos outros intelectuais. Quanto à Biblioteca, sua história é seu fado. O Brasil era colônia portuguesa quando, em 1755, Lisboa foi arrasada por um terremoto que provocou devastador incêndio. O rei dom José I sobreviveu e junto a mutirões de lisboetas, em trabalho hercúleo, conseguiu-se salvar parte da Real Biblioteca de Portugal, conhecida também como Real Livraria.

Em português claro e castiço: sem o homem que entra em cena, nesse momento a remontagem da Biblioteca teria sido tola utopia. Fala-se do diplomata Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e marquês de Pombal. Amante das letras, ele foi decisivo para refazer a Biblioteca na região portuguesa da Ajuda, a tal ponto de tê-la incluído entre as prioridades na reconstrução de Lisboa – e, já que era para reconstruir, o marquês aproveitou que as tortas ruelas tinham virado pó e projetou a capital portuguesa com linearidade. O tempo voa, e em 1807 o acervo já reunia cerca de 60 mil peças: livros, manuscritos, incunábulos (primeiras obras impressas com tipos móveis, entre 1445 e 1500), mapas, gravuras, medalhas e moedas. Mas sempre tem alguém para apavorar, e eis que surgem as tropas de Napoleão…

Em português claro e castiço: a Família Real Portuguesa, com Maria I como rainha e dom João feito príncipe regente, fugiu para o Brasil em 1808, trazendo dois anos depois todo o acervo. E aqui ele não parou de crescer – ainda hoje vigora, só na teoria, um decreto de 1825 dizendo que todo cidadão tem de fazer doações à Biblioteca. Para a Cinelândia mudou-se em 1910, com Nilo Peçanha na Presidência da República.

RIDÍCULO Silveira, por que o senhor ganhou a medalha? Resposta: “não sei mesmo” (Crédito:Onofre Veras/TheNews2/)

Em português claro e castiço: a partir daí o mundo rende homenagens à Biblioteca, mas, hoje, o seu presidente rende homenagens a um cara que deu a seguinte resposta quando indagado:

— Por que o senhor foi condecorado?      

— Não sei mesmo.   

Em português claro e castiço: serve para esse episódio o registro de Machado de Assis, em 1861, no Diário do Rio de Janeiro: “em nosso País a mediocridade é um brasão”.

Do poeta à Istoé

O poeta carioca Marco Lucchesi, ocupante da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Letras, recusou-se a receber da Biblioteca Nacional a medalha da Ordem do Mérito do Livro. Motivo: é imensurável a distância entre o verso e a censura, e Lucchesi soube que, juntamente com ele, seria condecorado o deputado federal Daniel Silveira, bolsonarista e defensor do retorno do País aos anos de chumbo. “A Biblioteca Nacional, assim como outras instituições, foram sequestradas por Jair Bolsonaro”, diz o poeta. “Mas acredito que, quando essa doença passar, elas serão retomadas”.

Ele emprega inteligência, ironia e tino em suas definições do bolsonarismo: “é um mundo dentro de uma bolha de plástico, um mundo que se nutre do vazio. Um mundo que se faz círculo vicioso”. Mais: “o bolsonarismo é Midas ao contrário: tudo o que ele toca apodrece”. Há esperança aos democratas que querem a valorização da Cultura no Brasil? “Sim. Aquilo que apodrece renasce”.

HUMOR E DIGNIDADE Lucchesi: “o bolsonarismo é Midas ao contrário. Tudo o que ele toca apodrece” (Crédito:Ilan Pellenberg/AGIF/)
Ilan Pellenberg/AGIF/