O presidente Jair Bolsonaro gosta de citar a Bíblia, em particular o versículo 8:32 do Evangelho de João. No entanto, ao visitar neste domingo o velório do soldado do Exército Pedro Lucas Ferreira Chaves, que morreu de forma trágica durante um treinamento, Bolsonaro parecia ter um outro texto em mente: o Livro Negro do Terrorismo no Brasil, mais conhecido como Orvil (que é “livro” ao contrário).

Diante da congregação de jovens soldados, paraquedistas como ele também foi quando estava no Exército, Bolsonaro fez a seguinte pregação: “A nossa missão, a missão das Forças Armadas, é defender a pátria, é defender a democracia. E, como dizia quem se tornou um grande amigo, o ex-ministro Leônidas Pires Gonçalves, nós estamos a serviço da vontade da população brasileira.”

Não se trata de uma citação textual, mas a doutrina é inegavelmente a do Orvil. A menção ao “grande amigo e ex-ministro” não deixa dúvidas.

Leônidas Pires Gonçalves pertenceu à geração do golpe de 64. Chegou a ser cotado para a sucessão de João Batista Figueiredo. Mas Figueiredo foi o último dos generais-presidentes. Em 1985, o governo voltou aos civis e Gonçalves tornou-se Ministro do Exército no mandato de José Sarney.

O Orvil foi redigido por sua encomenda, para servir de contraponto ao relatório Brasil Nunca Mais (1985), que elencava os crimes de tortura e assassinato cometidos pelo regime militar. Como Sarney não autorizou a publicação da obra pelo Exército, ela passou a circular de maneira silenciosa entre militares e simpatizantes da direita.

Continuou assim pelas décadas seguintes, e ainda guarda uma certa aura clandestina, embora hoje seja possível encontrá-lo em links na internet. Não é segredo que serve de inspiração à família Bolsonaro, que inclusive deu um exemplar de presente ao guru dos destrambelhados Olavo de Carvalho.

O Orvil retrata as décadas de 1960 e 1970 como marcadas pelo risco permanente de subversão comunista da ordem política brasileira, com quatro tentativas concretas de tomada do poder. Em paralelo à radiografia das ações subversivos, constrói-se uma justificativa não apenas das ações, mas também da duração da intervenção militar, como necessárias para conter a esquerda.

Mas o aspecto mais relevante do Orvil para os dias de hoje é a doutrina de que as Forças Armadas têm a cumprir uma “missão de segurança interna em defesa da democracia”. Ela não está articulada de maneira sistemática, mas não escapa a quem lê o texto.

Fiquemos com a última página do Orvil, que reage às críticas feitas naquele momento contra o regime militar. Segundo o livro, estava em curso “a mais cara e bem estruturada agressão psicológica que se tem notícia” e seu objetivo seria “afastar a instituição armada das missões de segurança interna”.

Não foi apenas no Orvil que Leônidas Pires Gonçalves eternizou a crença que as Forças Armadas têm um papel de guardião das instituições – ou de “poder moderador”, segundo dizem juristas como Ives Gandra Martins Filho, nosso Carl Schmitt cheio de ginga e malícia.

É um fato registrado pela história que o general bafejava no cangote dos deputados constituintes enquanto eles redigiam os artigos sobre as Forças Armadas na Carta de 1988. Foi Gonçalves quem insistiu para que o hoje célebre artigo 142 atribuísse aos militares um papel na “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lembrou alguns dias atrás que ele foi um dos relatores do art. 142, e que assim podia assegurar que o artigo não pretendia transformar as Forças Armadas em poder moderador. Mas o ministro-general que acompanhava esse trabalho com toda atenção pensava o contrário. Transmitiu esse entendimento às gerações futuras por meio do Orvil.

Volto agora a Bolsonaro e sua fala de domingo. Não importa que o meio jurídico, o meio político e uma enorme fatia da sociedade civil tenham reagido de forma contundente nas últimas semanas à ideia de que existe um tipo de golpe militar que é autorizado pela Constituição. Diante de uma plateia de jovens militares, Bolsonaro não perdeu a oportunidade de repetir o seu velho ideário “orviliano”.

O presidente jamais vai deixar de acreditar que pode pedir uma intervenção das forças armadas a seu favor, e contra todas as outras instituições do país. Bolsonaro é irredimível.

 

IRREDIMÍVEL 2

 

Até os gestos de empatia de Jair Bolsonaro vêm misturados a uma dose amarga de afronta e agressão. A  decisão de deslocar-se em um domingo, de Brasília ao Rio de Janeiro, para prestar solidariedade à família e aos colegas de um jovem soldado morto poderia ser vista de maneira favorável, se não fosse o contraste chocante com a atitude do presidente diante dos mortos da covid-19, que já são mais de 50 mil. Bolsonaro jamais foi além de um “lamento” protocolar ao falar desse assunto. Jamais se demorou sequer em uma mensagem de conforto às dezenas de milhares de famílias atingidas pela epidemia. O soldado Pedro Lucas Ferreira Chaves merece a homenagem que recebeu. Os brasileiros doentes não merecem a negligência afrontosa do presidente. Bolsonaro é irredimível.