Toda cidade é povoada por prédios que foram demolidos, mas continuam na memória de quem passou por eles. É a nostalgia. Mas até mesmo aqueles que nunca os conheceram são tomados pela ausência. É a história, a saudade do que se não viveu. Este sentimento se apoderou da arquiteta carioca Ana Borelli, de 49 anos. Ela não conheceu a maior parte das edificações, parques e lojas do Rio de Janeiro Natal. Mas isso não a impediu de mergulhar no passado da antiga capital do Brasil, que foi considerada a Paris Tropical no início do século o XX. O resultado é o álbum “Rio de Janeiro Perdido” (TIX Editora). O volume traz 17 exemplos fotográficos da pujança da antiga capital, além de mapas, a das construções demolidas e a das poucas que restam de pé. Cada imagem é acompanhada de uma ficha técnica e vinhetas que Ana criou para definir o “logotipo” de cada edifício e logradouro a partir de características significativas.

MAGAZINE Interior da loja de artigos masculinos Torre Eiffel, na rua do Ouvidor: serviços de primeiro mundo (Crédito:Divulgação)

Não se trata, afirma Ana, de um levantamento de imagens classificado por tempo e espaço, à maneira de dezenas de obras editadas sobre o tema. Para Ana, o que importa é o tempo e o espaço vagos das lembranças. “Quis reconstruir a memória afetiva da cidade”, diz ela. “São várias gerações de pessoas e suas lembranças. Como elas vão morrendo, e com elas imagens fugidias da cidade, tentei fazer um resgate para que as novas gerações possam compreender o que representou o Rio para o orgulho nacional.”

De arraial a metrópole

O Rio foi reerguido pelo menos cinco vezes. Em 1808, a família real portuguesa impôs uma reconfiguração geral da velho arraial, com suas casas modestas e vielas tortuosas. Foram edificados prédios públicos, parques e palácios para a nobreza — como a Quinta da Boa Vista, incendiada em 2018. A Independência fez com que a capital imperial fosse redimensionada, com mais áreas verdes, bibliotecas e teatros. Na República, ocorreu uma inovação. Nasceu o Rio de Janeiro da Belle Époque, admirada no mundo todo.

Durante a gestão do prefeito Francisco Pereira Passos, entre 1902 e 1906, foram demolidos os prédios e até um morro célebre — o morro do Castelo, local onde a cidade nascera, em 1565 — para dar lugar à capital moderna. Foi uma revolução urbanística inspirada na reconstrução de Paris, do arquiteto Haussmann, entre 1853 e 1892. No lugar do casario, abriram-se as avenidas e alamedas residenciais dotadas de rede de água e esgoto e recolhimento de lixo.

Bota abaixo

MARCOS O Pavilhão de Caça e Pesca na Exposição Internacional de 1922 (à esq). Aao centro, o restaurante Pavilhão Mourisco (1907-1957),
com suas cúpulas douradas, foi inaugurado na enseada de Botafogo. À direita, o Palácio dos Estados (à dir.) e o Pavilhão de Minas Gerais (ao fundo à esq.) da Exposição Nacional de 1908 na Praia Vermelha: orgulhos da cidade (Crédito:Divulgação)

Após do “Bota Abaixo” (1903), a metrópole abrigou hotéis, lojas de departamento, mercados, feiras universais e até prédios com certa ousadia de concepção. O hotel Avenida, de 1908, destacava-se na nova avenida Central. A loja Torre Eiffel, na rua do Ouvidor, ditava a moda masculina. Surgiram arquitetos como o italiano Antonio Virzi, que concebeu o prédio art nouveau da fábrica do Elixir Nogueira, em 1916, demolida em 1970. Mas o maior atrevimento foi de Alfredo Burnier, que assinou o Pavilhão Mourisco, com sete cúpulas douradas, inaugurado em 1907 na Enseada de Botafogo, para servir como café-restaurante. Foi demolido em 1957 para ceder espaço a mais uma remodelação da cidade, entre os anos 1960 e 1970. A cidade então mais populosa do País deixou de ser capital e pôs abaixo muito do que restou da cidade – mas, diferentemente de Pereira Passos, sem colocar nada relevante no lugar. “O Rio só pode ser restaurado como utopia, pela imaginação de cada um”, diz Ana, que ainda diz sonhar com sua ressurreição.

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