A bela e o golpe

A bela e o golpe

Livia Calmon Foto Folhapress Maria Thereza tinha apenas 17 anos quando se casou com João Goulart, um dos políticos mais influentes do País. Aos 21, o marido foi eleito presidente e ela virou primeira-dama. A mais elegante da história deste país. Mas foram apenas dois anos e sete meses perto do poder. Ela tinha 23 anos quando Jango foi deposto e a família, expulsa do País. Maria Thereza era considerada a Jacqueline Kennedy dos trópicos, embora não goste da comparação com a americana. Mas a brasileira ganhou manchete em jornais e revistas internacionais por ser jovem, bonita, chique e a mulher do presidente da República. Hoje, aos 73 anos, mãe de dois filhos e avó de oito netos, a testemunha ocular de um dos períodos mais marcantes da história é uma dona de casa bem-humorada, que ri dos boatos que ainda a perseguem. Vaidosa, é capaz de fazer uma visita surpresa esperar na sala se não estiver maquiada. É uma mulher do nosso tempo que teve forças para desenterrar o passado. Agora, Maria Thereza só deseja saber a verdade sobre a morte do marido para, talvez, silenciar. Ela se programou para passar o 31 de março em Porto Alegre, terra de onde partiu para o exílio. 1 O dia do golpe ?Eu estava ouvindo rádio e escutei uma notícia sobre Minas Gerais (foi em Juiz de Fora, Minas Gerais, de onde partiram as tropas militares em direção ao Rio de Janeiro, no dia 31 de março). Eu recebi a notícia do golpe por Tancredo Neves (então ministro de Jango) por telefone. Ele disse: dona Maria Thereza, aguarde aí na Granja do Torto novas ordens porque está tudo muito confuso. Acho que dr. Jango (que estava no Rio) vai para Porto Alegre e deve passar por Brasília, mas a confusão está generalizada.? 2 Os passos seguintes ?Eu tive algumas horas para sair da Granja. Tancredo ligou umas sete da noite e eu não tinha arrumado nada porque não sabia para onde ia. O Exército já tinha dado a ordem: ninguém entra, ninguém sai (a Granja do Torto estava cercada). Só com a autorização do capitão que comandava a tropa. Ele dizia: ?Estou cuidando da família, não precisa se preocupar, não vai acontecer nada.? Mas aí aconteceu tudo.? 3 A saída da Granja do Torto ?Fui escoltada pelos militares até Porto Alegre e não sabia o que fazer. Um mensageiro de Jango me mandou ir para nossa fazenda Rancho Grande, em São Borja (RS). Foi o momento mais difícil para mim, porque eu não sabia onde estava Jango. Achava que ele estava em reunião com o pessoal do Brizola. Quando cheguei, estava amanhecendo. Foi triste. Me bateu uma solidão. Uma coisa horrível. Me senti uma estranha no ninho.? 4 O figurino escolhido para a fuga do País ?Eu estava com uma saia preta e uma camisa de seda.? 5 A fuga ?Não deu tempo de nada. Nada, absolutamente nada. Eu peguei uma saia de couro que eu gostava muito e uma blusa de seda preta que tinha um laço amarrado na frente. Nunca imaginei que fosse embora e não voltasse para minha casa. Eu achei que iria para um lugar encontrar com o Jango e que depois eu voltaria. 6 A primeira noite fora de casa ?Na fazenda tinha tudo, menos as roupas da gente. No outro dia os militares me deram 24 horas para sair ou seria presa com meus filhos porque não poderia permanecer em território nacional. À tarde o avião de Jango chegou e nos levou para o Uruguai.? 7 O reencontro com Jango ?Fiquei uns quatro dias sem falar com Jango. Ele demorou para chegar ao Uruguai. Fui a primeira exilada a pisar no país e fui recebida por amigos dele. Quando reencontrei Jango ele estava bem e perguntou: ?Como foi a viagem?? Eu disse: ?Péssima. Eu espero voltar logo.? Ele estava preocupado conosco. Nunca soube por que ele demorou tanto.? 8 Ninguém sabe o paradeiro do que ficou para trás ?Jamais soube onde tudo foi parar. Eu fiquei com um vestido do Dener de renda bege que eu tenho até hoje guardado como relíquia. Esse vestido estava numa costureira, em Brasília, e uma amiga minha resgatou. Nunca mais tive notícia das minhas roupas, dos meus perfumes, meus quadros, minhas coisas pessoais, até meus bichinhos. Nunca mais eu soube de nada.? 9 A imagem que ficou na cabeça, 50 anos após o golpe ?O comício da Central do Brasil (13 de março, pretexto para o golpe) foi muito marcante na minha vida. Era um clima muito tenso. Hoje, quando fazem essas comemorações, eu ainda vejo aquele momento, em cima daquele palanque. Aquele discurso do Jango foi maravilhoso. Realmente é emocionante. Só que eu nunca pensei que, 50 anos depois, estivesse aqui para me lembrar.? 10 Antes do golpe, o pressentimento ?Eu sentia e ele também. Ele me falou: ?Olha, Teca, nós vamos fazer esse comício. Mas eu tenho a sensação de que esse vai ser o estopim de toda a história.? E realmente foi. O comício foi o que culminou com todo o movimento. Desde que Jango assumiu com aquele colegiado, achei que era um prenúncio de que tudo não ia terminar bem.? 11 Quando recebeu a notícia da posse de Jango, Maria Thereza estava na Espanha ?Eu fiquei na expectativa (Jango assumiu o poder 13 dias após a renúncia de Jânio Quadros). O pessoal no hotel me aplaudindo e eu perguntando: ?O que é isso?? Eu fiquei realmente muito apreensiva porque comecei a ler as notícias de que Jango estava chegando ao Brasil e não queriam que ele tomasse posse.? 12 Para voltar ao Brasil como primeira- dama, teve de improvisar o look ?Antes de viajar para a Espanha, eu fiz uma roupa com Dener, que foi a que usei na chegada ao Brasil. Um tailleur que parecia uma roupa de linho, uma saia justinha cor areia, bem clarinha, com uma blusa colorida com decote em V, uma roupa bem simples.? 13 A elegância da ex-primeira-dama tinha nome: Dener Pamplona de Abreu ?Eu conheci o Dener quando Jango era vice-presidente. Tempos depois, em São Paulo, quando ele estava começando a ter fama, meus amigos me levaram ao ateliê dele. Quando Jango se tornou presidente eu procurei Dener. Eu provava tudo em Brasília e dizia: ?Essa aqui eu quero. Essa aqui tem muito bordado.? Mas ele sempre acertava comigo.? 14 Na era Jango, o poder e a beleza andavam juntos ?Quando a gente tem 20 e poucos anos, em geral todo mundo é bonito. Eu me achava bonita. Era importante porque meu marido também era muito bonito. Eu sempre achei que a beleza tinha muita influência naquele momento. Gente jovem. Ele muito jovem. Uma política jovem. Bossa nova.? 15 Maria Thereza Goulart, a Jacqueline Kennedy brasileira. Todo mundo achava, menos ela ?De maneira nenhuma. Eu acho que a comparação com Jackie Kennedy não tinha muito a ver. Ela era uma pessoa muito especial, mas para os EUA. Eu era muito brasileira. Era muito gaúcha, muito aqui para o Brasil. Eu não me espelhava nela.? 16 A carta de Sinatra ?As pessoas diziam assim: essa carta não é do Frank Sinatra. Eu via que não era de assessor. Ele dizia que tinha lido uma entrevista minha na revista Times, que acompanhava a minha história, admirava a beleza da primeira-dama. Nessa entrevista falei que adorava, aliás, adoro as músicas dele. Ele enviou uma coleção de discos, inclusive dois, três que não tinham sido lançados.? 17 Liguem as sirenes, a primeira-dama chegou ?Eu adorava. O Jango não gostava. Quando a gente chegava ao Rio, eu ficava no palácio ou no apartamento na avenida Atlântica e mandava ligar as sirenes. As pessoas paravam, abanavam, pediam autógrafo. O Jango ficava danado comigo.? 18 O ciúme do marido ?Logo que casei, fiquei grávida. O meu marido saía muito, ele era assediado. Mas, depois que eu tive meus filhos, fiquei mais calminha porque Jango sempre voltava para casa. Ele tinha paixão pelo filho. Então isso aí melhorou também a minha parte.? 19 As críticas ?Falavam que eu não gostava de comparecer aos eventos oficiais. Mas não é verdade. Fui a todos os encontros com os presidentes que ele recebeu e trabalhei na LBA, um trabalho que eu amava. Criticam todo mundo e eu não sou dinheiro para todo mundo gostar de mim.? 20 Jô, amor à primeira vista ?Eu conheci Jango com 15 anos. Aos 17 casei. Fiquei meio confusa. Ele era famoso, muito popular, um homem rico. Eu era de família classe média, do interior de São Borja. Então para mim foi uma surpresa ele chegar para o meu pai e dizer que queria casar comigo. Eram 20 anos de diferença de idade.? 21 A primeira cuba libre, a primeira balada ela não esquece ?Com Jango tomei a minha primeira cuba libre… (gargalha). Eu nunca tinha bebido na minha vida e nós fomos a uma festa em Porto Alegre. Ele disse: ?Quer tomar uma cuba libre?? Eu disse: ?Quero?. Foi ele também quem me levou à primeira boate, no Rio de Janeiro, a Casablanca. Era uma boate do Carlos Machado, tinha umas mulheres lindíssimas que o paqueravam. Eu tinha 16 anos, mas com ele eu entrava. Ele foi meu primeiro amor, primeiro tudo.? 22 As traições na piada de Chico Anysio ?O coronel Limoeiro tinha a Maria Thereza que o traía. Muitos diziam que esse personagem era relacionado com o Jango. Uma vez eu falei com Chico e ele disse que não tinha nada a ver.? 23 E a fofoca continua… ?Eu acabei de ler um livro de um jornalista de Porto Alegre e fiquei injuriada. Ele afirma que eu tinha um caso com o piloto do Jango. Não sei quem é. Quando você é casada com o presidente da República, que tem segurança para tudo que é lado, você tem que ter uma conduta impecável.? 24 Os bons momentos no exílio ?Parece incrível, mas eu sinto muita saudade do meu tempo no Uruguai. Os meninos eram muito pequenininhos. Foi o momento em que eu pude levá-los ao colégio, o pai também tinha essa rotina. Uma vida bem familiar. Acho que esse tempo foi de muito valor para mim. Mesmo sendo o exílio.? 25 A frustração por não ter estudado ?Uma das coisas que eu sinto muito é não ter seguido uma carreira. Eu saí do colégio com 17 anos. Então eu não tive oportunidade de avançar meus estudos. Eu falo aqui em casa: ?Eu invejo vocês, tão sabidos, eu fiquei para trás.? 26 Amores depois de Jango ?Tive relacionamentos importantes depois que fiquei viúva com 37 anos. Aos 40 tive o primeiro com um gaúcho muito legal. Depois eu conheci um rapaz que trabalhava no Banco de Boston, muito, muito lindo. Eu estava com 43. Ele com 35. Pessoas interessantes, maravilhosas. O terceiro foi um advogado, durou pouco. Não posso dar nomes. Cada um tem sua vida agora.? 27 As receitas de beleza aos 73 ?Eu faço muita ginástica, me trato com medicina ortomolecular com um médico de Porto Alegre. Sou magra, mas gosto de comer. Sou muito inquieta. Não sou uma pessoa que fica vendo televisão, assistindo filme em casa. Eu adoro ir ao cinema, ao teatro. Comer pipoca. Eu gosto muito de andar. Calço o tênis e vou.? 28 O charme das primeiras-damas ?Não tenho muita preocupação de ficar observando. Mas há pessoas bem interessantes. Dona Ruth, por exemplo. Dona Marisa também. Simples, mas sempre acompanhando o marido. Eu acho que isso também é válido. São pessoas mais velhas, mas que têm muita classe, muita categoria. Cada uma tem uma personalidade.? 29 A política no sangue ?O Christopher, que nasceu em Londres, dois meses antes de Jango falecer, é vereador em Porto Alegre. Gosto porque é o sonho dele e ele é o primeiro neto. Ele ficou muito junto comigo desde que o Jango faleceu. Eu praticamente o criei. Tenho paixão por todos os meus netos, mas esse realmente é minha bandeira.? 30 A exumação: um ponto final na história ?Agora eu vou ver o que vai dar esse negócio da exumação porque eu ainda tenho dúvidas. As pessoas dizem tantas coisas, tantas declarações falando de remédio, disso e daquilo. A cabeça da gente fica confusa. Fico pensando foi isso, foi aquilo. Então é melhor que aconteça o que tem de acontecer agora. Vamos tirar a dúvida.? 31 O futuro bate à porta ?Acho que eu vivi muita coisa muito cedo na minha vida, então eu acho que rancor é uma coisa que não existe no meu coração, eu perdi muita coisa de minha família. Acho que tudo passa, a gente tem de tratar de ser feliz e que tudo aconteça com muita paz.?