Apesar de muitos cientistas afirmarem que o desmatamento e a degeneração da Amazônia já chegaram ao chamado “ponto de não retorno”, quando a situação crítica não pode ser revertida, o climatologista Carlos Nobre, referência mundial quando o assunto é a floresta, ainda tem esperanças. Ele afirma que, se o Brasil eliminar a emissão de gases de efeito estufa, dentro dos parâmetros do Acordo de Paris, a floresta pode ser salva. Esse otimismo pode indicar uma mudança na visão do cientista, que há 30 anos fez uma previsão bem sombria, afirmando que a Amazônia passaria por um processo de savanização, que hoje está em curso no sul da região. Hoje ele acredita que o Brasil é o primeiro grande país do mundo que pode ainda chegar às metas do acordo global. Nobre lançou o projeto ambicioso da criação do Instituto de Tecnologia da Amazônia (AmIT), seguindo padrões do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde ele fez doutorado em Meteorologia. A ideia é criar centros de pesquisa em pontos da floresta, no Brasil e nos países que compartilham a Amazônia. O cientista mora em São José dos Campos (SP) e é pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A Amazônia teria chegado ao “ponto de não retorno”?
O sul da Amazônia tem sintomas de que estaria muito próximo do ponto de não retorno, e alguns cientistas acham que já passou. Eu, particularmente, acho que poderíamos salvar a Amazônia. A estação seca já aumentou quatro ou cinco semanas nos últimos 40 anos em todo o sul da região, que vai desde o Oceano Atlântico até a Amazônia boliviana. E, ficando mais longa, é sinal de que o risco é muito grande. Antes, era de três ou quatro meses, agora já está chegando a quatro ou cinco meses. Se chegar de cinco a seis meses, e continuar nesse ritmo por mais duas ou três décadas, já é o clima da savana tropical. Não dá para manter a floresta com a estação seca de seis meses. Outro sinal é que tivemos secas muito pronunciadas e frequentes em 20 anos, em 2005, 2010, 2016 e 2020. Antes era uma a cada 15 ou 20 anos.

O aumento da estação seca é o grande determinante na ameaça à Amazônia?
Isso. Somada ao desmatamento e à degradação, principalmente no sul da região. Além da estação longa, está ficando de 2° a 3° mais quente, e com redução de 20% a 30% nas chuvas. Com isso, aumentou demais a mortalidade das árvores nessa imensa região, mais de 2 milhões de km2, sem falar de emissão de gás carbônico de queimada. A floresta se transformou em fonte de gás carbônico. Quando uma árvore morre, ela não perde todo o carbono no dia seguinte. É diferente da queimada, depois dela a vegetação já perde 60% ou 70% do carbono. Quando ela morre naturalmente, ela vai lentamente perdendo o carbono, vai tendo uma reação química de decomposição, de oxidação. Ela vai liberando o gás carbônico e isso leva dez anos. Até ela realmente se decompor. Essa mortalidade fez com que a floresta naquela região passasse a soltar mais carbono do que ela retira da atmosfera.

De onde vem sua posição de ainda acreditar na recuperação da Floresta Amazônica?
Por que eu e alguns cientistas achamos que é possível salvar a Amazônia do ponto de não retorno? É um enorme desafio, zerar desmatamento, degradação e fogo. Quando falo de fogo, é porque mais de 95% dos incêndios que ocorrem na Amazônia não são causados por descargas elétricas. São causados pelo homem. Algumas queimadas são criminosas, outras utilizam uma tradição da pecuária brasileira há séculos. Infelizmente não adotamos uma pecuária moderna, que não usa fogo para reconstituir a pastagem desmatada. Quase todos os pecuaristas brasileiros usam fogo antes de plantar a grama. A Embrapa, há mais de 25 anos desenvolveu um sistema em que o solo passa por um tratorzinho, pequeno, que vai processando toda a grama decomposta. Ele corta, mistura com o solo e não usa fogo. Aquela pastagem recresce muito rapidamente. Quem não utiliza isso, a grande maioria de fazendeiros e pecuaristas, põe fogo na pastagem, e a floresta está ali do lado. O fogo pula para a floresta. Esse é um fator muito forte da degradação.

O senhor apresentou um projeto na COP27 que falava de desmatamento e de recuperação, e também da importância de cumprir o Acordo de Paris.
Desmatamento é o desafio dos países amazônicos. Mas existe o desafio global. Se o aquecimento global continuar a aumentar, estudos mostram que se a temperatura do planeta subir dois ou três graus, ela está em 1,15°, 1,2°, se chegar a 2,5°, vai provocar a estação seca por seis meses ou mais, isso acabaria com a floresta mesmo se a gente zerasse o desmatamento e a degradação. É preciso controlar esse fator, é preciso cumprir o Acordo de Paris. Com 1,5°, as secas ainda serão maiores do que hoje, porque estamos com 1,2°. Com esse índice, precisamos restaurar grande parte da área desmatada. Se criarmos o maior projeto de restauração do planeta, nós julgamos que isso vai fazer a estação seca ficar mais curta. Vai reciclar a água, porque a floresta transpira uma grande quantidade de vapor d’água. Isso faria a floresta voltar a funcionar.

Quais as chances reais de cumprir o Acordo de Paris?
Não vou botar minha mão no fogo. É o maior desafio que a humanidade já enfrentou. Reduzir as emissões em 50% até 2030 e zerar a emissão líquida até 2050. Ainda não temos os números oficiais, mas os indícios dão conta de que tivemos em 2022 o recorde de emissões da história. E nada está indicando que até 2025 teremos redução. Os mais otimistas acreditam que as emissões vão aumentar até 2025, depois estabilizar e aí começar a cair, É muito difícil imaginar que em cinco anos será possível reduzir as emissões em 50%. Porque 70% é geração de energia, eletricidade, veículos, e também produção de cimento e produção de aço. É difícil que em cinco anos se possa substituir a geração de eletricidade em 50% por energias renováveis, ou tentar que 50% dos veículos passem a ser elétricos. A agricultura global responde por quase 30% da emissão de todos os gases de efeito estufa no mundo, e no Brasil a pecuária é responsável por 50% das emissões, com o desmatamento para pastagem, a emissão no arroto do boi etc. Então tem que passar para a agricultura regenerativa. Estudo da Embrapa, de 2016, diz que se o Brasil passasse a uma agricultura e a uma pecuária regenerativas, a gente poderia chegar em 2030 com agricultura e pecuária com emissão zero de gases. Na China, quase 80% da emissão vem da queima de combustíveis fósseis. Nos EUA, quase 70%, mas, no Brasil, é só de 18% a 20%. A China disse que só vai atingir em 2060, e a Índia, apenas em 2070. Migrando rapidamente para agricultura e pecuária regenerativas e energias renováveis, o Brasil é o primeiro país que apresenta condições de atingir as metas do Acordo de Paris.

O senhor pode falar sobre o projeto para o Instituto de Tecnologia da Amazônia?
Sim, é o AmIT, a ideia de um instituto de desenvolvimento de tecnologia no mesmo padrão do MIT. Ele será pan-amazônico, com a maioria, para não dizer com todos os países amazônicos, e ele terá centros de pesquisas. Nós identificamos cinco áreas temáticas para laboratórios de pesquisas e centros educacionais de graduação e pós-graduação. Conversamos com colegas de vários países. A Colômbia teria parte do Instituto em Letícia. No Peru, seria em Iquitos. Na Bolívia, em Cobija, na fronteira com Acre e Rondônia, e o Equador está muito interessado. No Brasil, já tem o interesse de Manaus, Belém e Santarém. E com laboratórios móveis, em barcos, se movendo para fazer pesquisa e capacitação de populações em toda a Amazônia.

Quais são as cinco áreas de atuação?
Primeiro, Floresta e Sociobiodiversidade, porque temos que valorizar o conhecimento dos povos indígenas e das comunidades locais, O segundo seria Paisagens Alteradas. Com mais de 2 milhões de km2 desmatados e degradados na Amazônia, tem que ter muita tecnologia para restaurar e para a industrialização dos produtos da floresta. A terceira área é Águas. A Amazônia tem o maior sistema fluvial do mundo, com um enorme potencial do uso da água. A quarta é Infraestrutura Sustentável, saber como desenvolver uma nova economia da Amazônia, chamada de “economia da floresta em pé”. E, por fim, Amazônia Urbana. Cerca de 70% da população é urbana. É preciso também encontrar soluções para as questões urbanas. Desde o dia inicial o projeto foi criado pensando em uma participação pública-privada. Em ONGs do mundo inteiro, parques tecnológicos são parcerias entre universidades e o mundo empresarial. E eu já conversei com o BNDES, com o Banco Mundial e com o Banco Interamericano. Esse estudo prévio que realizanos jindicou que precisamos ter um valor substantivo, na casa de um bilhão de dólares.

O senhor enxerga grandes diferenças entra a política ambiental de Lula em seus primeiros mandatos e agora, quando se começa a configurar um novo período?
Espero que sim. Os mandatos do Lula e da Dilma mostraram grandes reduções dos desmatamentos. De 2004 a 2012, o desmatamento caiu 83% e depois deu algumas subidas, pequenas. Em 2012 foi de 4.600 km2, em 2014 subiu para 5.000 km2. E os números dos produtos agrícolas tradicionais, carne e soja, dobraram de 2004 a 2012. A produtividade agrícola pode subir muito sem desmatar. O Lula, tanto no seu discurso de posse como antes, fala que na Amazônia uma árvore vale muito mais do que você tirá-la de lá. Ele fez muito contra o desmatamento, mas agora ele fala do conceito de uma floresta em pé. Marina Silva começou a trazer o tema ao discurso. É algo novo globalmente.

O governo começou uma investida de combate ao garimpo na terra dos Yanomamis. O senhor acha que é possível o sucesso total nessa ação armada?
Eu acho que é possível, sim. Quando a gente olha para 30 anos atrás, havia mais de 20 mil garimpeiros na região onde vivem os Yanomamis. Em 1989, o Brasil foi escolhido para sediar a Eco92, no Rio, a primeira grande reunião mundial sobre assuntos ambientais. O governo brasileiro agiu e, olhe bem, era o presidente Fernando Collor, que não tinha nenhum amor pelos indígenas nem nada. Ele ficou preocupado. Ao sediar a Eco92 com isso explodindo, o Brasil ia virar um pária. Há 30 anos, as Forças Armadas foram lá, junto com Polícia Federal e Ibama, e praticamente expulsaram todos os 20 mil garimpeiros. Mas não será fácil repetir isso. Comparando com 30 anos atrás, o crime organizado explodiu. A PF destruiu um campo de garimpo ilegal e declarou que quem financiou foi o PCC. Em 2019, satélites do Inpe enviaram centenas de avisos enquanto estavam grilando a floresta na BR-163. Grilaram mais de 3 mil hectares. Os alertas foram ao Ibama, ao Governo Federal, que não mandaram ninguém. Isso foi um sinal verde para o crime. Tem que ter uma investigação eficaz. Eu sei que mandar prender os líderes do PCC é difícil, porque eles já estão presos [risos], mas tem que combater a coisa lá no campo e destruir tudo, para gerar prejuízo ao financiador, para que ele sinta essa perda de dinheiro e pense melhor antes de continuar.