Deby Brennand: “Frei Damião deixa um legado fraternidade”

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A diretora pernambucana Deby Brennand iniciou a carreira cinematográfica ainda como estudante, em 1998. Dirigiu programas para a TV Globo, curatas-metragens e o documentário “Danado de Bom” (2016), sobre o músico pernambucano João Silva, parceiro de Luiz Gonzaga. Seu segundo longa-metragem é o docudrama “Frei Damião – O santo do Nordeste”, sobre o frade franciscano que atuou em Pernambuco, Rio Grande do Norte e Belém do Pará entre 1931 até sua morte, com 99 anos. O filme mistura material inédito e sequências dramatizadas. O filme já excursionou por festivais e deve estrear no início de novembro de 2019. Nesta entrevista, ela revela os desafios e o fascínio sobre o religioso.

Como surgiu o projeto de dirigir e produzir um filme sobre Frei Damião?
O projeto veio da produtora Fábrica Estúdios.  Eles estavam desenvolvendo uma série documental sobre milagres e se depararam com um caso atribuído ao Frei Damião.  Procuraram conhecer mais sobre ele e propuseram à Ordem dos Capuchinhos um projeto de documentário sobre o Frei Damião, que foi roteirizado por Nadezhda Bezerra.  Depois me convidaram para dirigir e eu aceitei imediatamente.

Quais as dificuldades enfrentadas ao longo do processo?
Acho que a grande dificuldade da gente foi não poder ouvi-lo, afinal ele já havia morrido há 20 anos quando começamos o projeto.  E como ele foi uma pessoa muito fechada, muito “na dele”, avesso a entrevistas e a falar sobre si próprio, acabou que a gente não teve o Frei Damião em falando em “primeira pessoa”. Também não houve como conversar com o Frei Fernando Rossi – seu companheiro mais próximo – nem com Anita, sua assessora e cuidadora, pois ambos também já são falecidos.

Por que vocês dramatizaram algumas cenas? Isso não é um tanto artificial? Foi, talvez, porque não havia material visual suficiente?
A gente tinha a intenção de dramatizar um dos inúmeros casos de milagres que nos foram contados ao longo da pesquisa, e foi o que fizemos.  Além disso, como queríamos mostrar a vida dele que muita gente não conheceu, sua infância e juventude na Itália nas primeiras décadas do século passado, optamos por algumas dramatizações já que não existiam registros audiovisuais dessa época.

Como foi a pesquisa de material visual para o filme?
Tivemos inicialmente acesso ao acervo privado dos Capuchinhos, mais de 100 fitas VHS, a maior parte delas filmada pelo próprio Frei Fernando, que acompanhava o Frei Damião em suas missões no Brasil.  Esse material inédito é riquíssimo, mostra muitos momentos da intimidade do Frei Damião da segunda metade dos anos 80 até o fim da sua vida.  Depois das filmagens, acabamos também tendo acesso a imagens captadas em 16mm nos anos 60 pelos cineastas paraibanos Otacílio Cartaxo e Machado Bitencourt. São imagens lindas, que também nunca haviam sido finalizadas e lançadas, e cobriam um período histórico que a gente praticamente não tinha material visual.  Devemos à viúva de Otacílio, Fátima Cartaxo, o acesso a esse material.

Que aspectos ou detalhes sobre Damião vocês descobriram? Há histórias ou detalhes que não constam do filme, que podem ser utilizadas na reportagem?
São muitas histórias.  Acho que um ponto que a gente aborda no filme é o fato dele ter abandonado tudo na Itália e vindo ao Nordeste brasileiro no começo do século passado.  Mas uma coisa que pouca gente se dá conta é que ele retornou muito poucas vezes à sua terra natal, mantinha contato com a família apenas por cartas, ainda assim com pouca frequência.  Era uma vida realmente dedicada à devoção e à sua missão de evangelizar.  Me chamou muito a atenção o fato que boa parte do seu público não conseguia entendê-lo, porque ele não falava português muito bem, mas todos ficavam atentos durante os seus sermões.  Outro ponto interessante foi a questão dos fogos de artifício: é comum nas cidades de interior saudar um visitante ilustre com fogos de artifício, também muito usados em festas, quermesses e demais eventos religiosos.  Frei Damião costumava ser recebido assim, até que ele solicitou que não acontecesse mais, pois ele sempre se assustava. Os fogos de artifício lembravam os barulhos de tiro com os quais ele teve de conviver durante sua participação na I Guerra Mundial.

A gente cita inúmeros aspectos da mitologia em torno do Frei Damião no filme, as histórias de que ele trazia chuva para as cidades, ou mesmo de que ele flutuava ao invés de andar.  Mas alguns casos pitorescos ficaram de fora, como a história de que ele ordenou os sapos de uma cidade do interior da Paraíba a pararem de coaxar e eles obedeceram.  Relatos de curas milagrosas são muitos, teve até gente que relata ter sido curada pelo rádio.  Uma coisa é certa, não faltam histórias ligadas ao Frei Damião e a gente teve bastante trabalho para chegar à versão final com 90 minutos de duração.

Entre as pessoas que você ouviu, quais as mais importantes? Você poderia me passar o contato delas? Penso em Frei Fernando, por exemplo.
Infelizmente o Frei Fernando já faleceu. Acho que uma das pessoas mais importantes que conversamos foi o Frei Jociel Gomes, que estudou muito a vida do Frei Damião pois é vice-postulador da causa de sua beatificação.  Ele também pode passar o contato para pessoas que conviveram com o Frei Damião, como o Cícero e o seu médico Blancard Torres.

Qual a importância e o legado de Frei Damião?
Acho que Frei Damião teve uma missão em vida que ele perseguiu como quase ninguém mais faz hoje em dia, se despindo de quase tudo da sua vida e se dedicando 100% à missão.  Foi uma missão não só de evangelizar, de catequizar, mas também de ajudar e dar apoio aos mais humildes. Principalmente aqui no nordeste brasileiro, onde o Estado não chegava (e até hoje chega muito precariamente), ele teve esse papel de ser mais que um líder espiritual para o povo mais pobre, de ser praticamente um psicólogo dessa gente.  E o legado que ele deixa é esse legado de fraternidade, de amor ao próximo, de escutar atentamente as pessoas, e também os seus milagres.

O filme não mostra o relacionamento de Damião com políticos. Por que essa ausência, já que ele foi um líder espiritual do Nordeste que, de alguma forma se envolveu em política? Como você analisa o contato dele com políticos como Collor?
Durante as pesquisas a gente percebeu que essa ligação com política foi um aspecto menor da trajetória dele, então preferimos não abordá-lo.  Pessoalmente, acho que alguns políticos podem ter tentado se aproveitar da imagem do Frei Damião perante o povo do nordeste.

Entre os documentos que vocês pesquisaram, há vários casos de curas milagrosas. O que você pensa sobre isso?
Eu acredito que Frei Damião é um Santo e muito em breve será reconhecido como tal pela Igreja Católica.

Frei Damião deixou discípulos a sua altura?
Não acredito que ele tenha deixado nenhum discípulo à sua altura.

Há como comparar Frei Damião e Padre Cícero em termos de importância na catequese?
Há uma grande similaridade na devoção do povo nordestino a essas duas figuras, ambos foram muito importantes para o povo da região, apesar de serem personalidades e histórias de vida completamente diferentes.

Você acha que as missões de Frei Damião foram bem sucedidas? Hoje em dia, sem ele, as igrejas pentecostais tomaram conta dos fiéis.
Acho que a Igreja Católica na região Nordeste deve muito ao Frei Damião.  Ele foi uma figura muito importante para manter a devoção dos fiéis num momento de muitas mudanças dentro da própria Igreja, como o Concílio Vaticano II.