Há palavras que existem apenas para complicar a vida. Peronismo é uma delas.
Faz tempo que fui pela primeira vez em Buenos Aires. Para os europeus cultos a capital da Argentina é uma espécie de poema incapaz de envelhecer.
Eles pensam nos argentinos como heróis trágicos e elegantes, capazes das coisas incríveis do realismo mágico dos escritores da América do sul. Mas apenas porque nunca foram lá.
Tinha uma grande curiosidade em me perder na Boca e em Santelmo, subir até à Recoleta e deambular pela Corrientes, seguramente uma das mais prodigiosas avenidas do universo com suas múltiplas livrarias e salas de Teatro.
Todos os percursos feitos devolveram sensações fortes, mas anacrônicas. La Bombonera é uma panela gigante de emoções bárbaras. Os fanáticos fãs do Juniors fazem a Favela do Alemão parecer a Champs Élisée, mas terminada a partida com a vitória do Boca, logo a antiga usina elétrica, apenas uns metros mais adiante, se transformava num elegante lieu Parisien. Muito estranho!
O mesmo acontece por todos os bairros, ruas e lugares, perseguindo Borges, caçando Gardel. Andando a pé, de metrô ou de taxi, a sensação é igual e terrível: em Buenos Aires as pessoas se escondem do futuro e o presente é apenas uma inconsistente memória.
Recordo um episódio que serve de metáfora simples para compreensão de tudo o que acontece neste país. A “carne” do peronismo.
Num dos restaurantes turísticos do bairro de San Telmo uma colher cortando carne, servia de garota de propaganda à qualidade das famosas carnes, macias e de sabor único, que celebrizaram e enriqueceram o país das Pampas a partir do final do séc XIX – o que a Argentina foi no passado, essa grandeza europeia se deve ao sucesso na exportação de carne.
Não resisti à eficácia do comercial e pedi. Rib eye, picanha, maminha e contra filé. Vinha bonita, suculenta, mas rija como sola de sapato.
Encarei o moço mostrando meu desagrado pela fraca qualidade da famosa carne e então, como um gaúcho literário ele me mostrou que a colher, de propaganda – que até corta a carne, de tão macia que ela é – estava afiada como se fosse uma faca.
Foi então que, enquanto da minha boca, parafraseando Borges na trama de César, me saia um desencantado – “Pero Che!”, que aquele garçom me serviu toda a Argentina numa bandeja (de prata).
Porque ao destino lhe agradam a variantes as simetrias e as repetições, também em Borges encontrei a equação para aquele fracasso coletivo.L
A Argentina perdeu de vez o bonde da história, vivendo apenas da glória de um passado que não dá mais para repetir. Os vícios de corrupção, nepotismo e os cartéis, em algum momento acabam fazendo com que a política retroceda. Como está acontecendo agora.
O peronismo é essa eterna pedra de mol, que amolece o aço e enrijece a carne e que periodicamente demonstra, para todo o mundo, a inexorável decadência da Argentina.