01/03/2019 - 16:55
Trino Márquez, doutor em ciências sociais e professor da Universidade Central da Venezuela, falou à ISTOÉ sobre a situação do país e as perspectivas de mudança da ditadura de Nicolás Maduro.
Até onde vai o caos na Venezuela, qual é o limite de resistência do governo?
É impossível saber. O país está mal, mas pode ficar pior, e as crises atuais certamente vão continuar. Temos um processo hiper inflacionário que é o único do mundo, e um desinvestimento dramático, além do nível de pobreza mais alto de toda a região latino-americana. Cerca de 90% das famílias estão em situação de pobreza e 50% está em situação de pobreza crítica. Mesmo assim, Nicolás Maduro permanece no poder. Nenhum desses indicadores vai melhorar enquanto ele permanecer.
O socialismo é o culpado pela situação social hoje?
É o fator principal. Olhando globalmente a situação, creio que o projeto do socialismo fracassou de maneira estrondosa na Venezuela. A crise econômica e social que estamos vivendo é fundamentalmente produto da reestatização, do intervencionismo excessivo na economia, do controle desmedido do câmbio, de preços, da expropriação de empresas que antes estavam em mãos privadas. Esse cerco à propriedade privada e particular levaram a essa situação de crise e ruína que estamos vivendo.
Os venezuelanos esperam que a ajuda para afastar Maduro do poder venha de fora?
A Venezuela obviamente precisa da ajuda humanitária, todos os indicadores mostram que a situação é muito grave. Os medicamentos de uso massivo chegam a níveis de escassez superiores a 65%. O número de camas no país é absolutamente deficitário. Além disso, aumentaram as doenças típicas de países empobrecidos, ligadas à escassez de comida e deficiência alimentar. A mais importante pesquisa que se realiza no país, que mede condições de vida, revelou que a partir de 2015 e 2016 subiu para 60% da população aqueles que só se alimentam uma ou duas vezes ao dia. Além disso, a maior parte da população consome carboidratos, farinhas, e muito pouca proteína. Pessoas que têm doenças crônicas, que sofrem de diabetes ou cardiopatia, por exemplo, não recebem os medicamentos que necessitam. Razões para receber a ajuda humanitária existem de sobra.
Que tipo de ajuda internacional Maduro é capaz de aceitar?
Ele se nega a reconhecer que o projeto de socialismo fracassou de maneira estrondosa. Ele quer projetar ao mundo e à Venezuela que está no controle da situação, mas não tem proposta nem resposta eficiente para encarar os problemas ligados à saúde, educação, infraestrutura, e ao parque industrial. A maior parte das empresas, de um total de cerca de 480, estão quebradas ou no vermelho. A PDVSA, a mais importante do país, a companhia telefônica e até as empresas foram reestatizadas, como a empresa produtora de café, por exemplo, ou empresas lácteas. É um fracasso esse modelo de Hugo Chávez e depois de Maduro, e eles se negam a admitir. Esses são alguns dos motivos pelos quais ele não aceita a ajuda humanitária.
Os venezuelanos esperam que a ajuda para tirar Maduro do poder venham de fora?
Eu penso que sim, porque não há como vir de dentro. Por exemplo, é absolutamente impossível que os laboratórios que operam no país satisfaçam a demanda de medicamentos. Os laboratórios que restaram estão em condições muito difíceis, porque os preços são controlados. A situação da demanda alimentícia também é impossível porque o aparato agroindustrial e de agricultura sofreu perdas impressionantes. Muitas das terras férteis hoje estão improdutivas, porque não há fertilizantes para cultivá-las.
Esses problemas sociais ajudariam a tirar o Maduro do poder?
Não necessariamente. Aí temos o caso de Cuba, que há 60 anos sendo governada pelo partido comunista cubano. Os níveis de miséria e de escassez são alarmantes, e sem o embargo nunca teria havido esse nível social em Cuba. Lá, no entanto, é diferente porque é uma ilha, um território mais fácil de ser controlado pela ditadura. Aqui é mais difícil de controlar porque, além de não ser uma ilha, temos uma larga experiência democrática, que começou em 1935. A paciência dos venezuelanos podia desaparecer, mas isso não ocorre porque muita gente se recorda com horror do que aconteceu em Caracas, em todas as cidades do interior, nos dias 27 e 28 de fevereiro de 1989 (o “Caracaço”). Foi muito doloroso o que se passou nesses dias, incêndios, saques, e as pessoas não querem viver uma experiência tão trágica e dolorosa como essa. Tampouco se pode julgar a paciência de um povo de forma indefinida.
As sanções impostas pelo governo americano ao petróleo venezuelano já estão se refletindo negativamente na vida das pessoas?
A crise venezuelana não tem nada a ver com as sanções norte-americanas. Digo por minha experiência, eu preciso tomar alguns medicamentos de forma crônica, porque sofro de pressão, e não conseguia há cinco anos, durante o governo de Barack Obama. Agora as sanções de Trump podem influenciar em tudo que tem a ver com gasolina, seguramente teremos problemas em um futuro imediato, pode ser que se agrave um pouco mais a situação. Mas a destruição da economia venezuelana tem a ver com a aplicação de um modelo que depreciou a gerência, a meritocracia, e utilizou recursos públicos para enriquecer um segmento reduzido de oficialismo. O governo entregou aos militares o petróleo da Venezuela e muitos desses recursos previstos foram parar na mão dos políticos. Essa tem sido a prática recorrente do Madurismo e do Chavismo por vinte anos.
Por quanto tempo a oposição venezuelana será capaz de manter a pressão?
A oposição tem uma estratégia clara que tem acontecido nos últimos anos, porque em 2015, quando alcançou o trunfo na Assembleia Nacional, se estabeleceu de maneira unida para a reeleição. Logo veio um conjunto sucessivo de quebras e a oposição não pôde enfrentar adequadamente o autoritarismo e os abusos do governo, que o fortaleceram. Agora a situação mudou, porque novamente a oposição se uniu em volta de Juan Guaidó, com uma estratégia que consistem em três pontos: fim da usurpação, governo de transição e eleições gerais. Agora se conta com uma estratégia, com um líder que é capaz de conectar-se com o país, sobretudo com um setor muito importante, que são os jovens, e há condições para que se provoque uma mudança em um futuro próximo. Não sabemos quão próxima está essa mudança, mas não há dúvida de que existe um quadro favorável para a recuperação democrática do país.
O que mais o Brasil pode fazer para pressionar pela renúncia de Maduro?
Especialmente com o governo de Bolsonaro, e também com o governo de Temer, o Brasil foi muito solidário com a oposição venezuelana, coisa que não acontecia com Dilma Rousseff. É importante seguir com o apoio para as comunidades que estão no noroeste do Brasil, porque são muito pobres. O Brasil é a economia mais importante e desenvolvida da região, e o mais populoso, portanto seu peso é fundamental e deve continuar insistindo para que Maduro convoque eleições democráticas supervisionadas pela comunidade internacional. Agora acho que o País podia ser mais ativo e agressivo. Isso requer um Itamaraty muito mais contundente no Grupo de Lima e em todos os mecanismos que existem na região. Também é importante estreitar as relações com a diplomacia norte americana, para que seja mais eficiente. Poderia incluir a Colômbia também, que é o país mais afetado pela crise, com 1 milhão de venezuelanos e ainda o perigo desse número aumentar dramaticamente nos próximos meses. Eu não concordo com a opção militar, mas creio que deve estar sempre presente como mecanismo de pressão sobre a mesa para favorecer a ajuda humanitária. O dano que Maduro está causando é imensurável e cada dia atinge mais a América do Sul, especialmente Colômbia, Equador e Peru, e em menor grau o Brasil.
Como avalia as tensões e conflitos do fim de semana na fronteira? Ajudam ou não a pressionar Maduro?
O mais importante que aconteceu ali é que a ditadura de Nicolás Maduro mostrou totalmente a sua cara. Ali se reprimiu grupos de voluntários com gente de quinta procedência. É insólito que um governo se negue a aceitar ajuda de medicamentos da Colômbia e do Brasil. As imagens na fronteira são dramáticas. O número de mortos foi de 24 ou 25. O governo ficou absolutamente exposto frente a comunidade internacional, se havia dúvidas sobre o caráter repressivo da ditadura, convenceu de que estamos frente a um ditador que não tem nenhum problema em reprimir a população e bloquear a ajuda humanitária. Outro elemento é que ele é capaz de usar qualquer instrumento para repressão, como grupos paramilitares armados, com delinquentes que foram tirados de prisões e incorporados com o grupo de choque, além de elementos do ELN e das Farc. A configuração desses grupos de choque mudou, já não se trata somente de jovens desempregados ou desgraçados, mas de delinquentes que promovem a guerrilha colombiana.