Em 1977, o sambista compositor Cartola declarou à revista Manchete que “quem gosta de homenagem é estátua”, na certa referindo-se a homenagens póstumas. Também pudera. Embora tivesse um repertório digno de gênio, não costumava ser homenageado com muita freqüência não. O compositor conheceu a fama na década de 30, caiu no ostracismo nos anos 40 e reconquistou o sucesso a partir de 1960. Negligenciado, só conseguiu gravar seu sonhado disco, História das escolas de samba: Mangueira, em 1974, seis anos antes de falecer vitimado pelo câncer, aos 72 anos. As dores e alegrias desse mestre da música brasileira estão no filme Cartola, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, que será exibido na Mostra Internacional de São Paulo, este mês. Não era o objetivo dos cineastas, mas parece uma homenagem. Ainda que não inclua estátuas.

Batizado Angenor de Oliveira (deveria ser Agenor, mas o tabelião escreveu errado), o futuro sambista nasceu no Rio, em 1908, e virou Cartola ainda adolescente por um hábito que prenunciava elegância: enquanto trabalhava como pedreiro, Angenor usava chapéu coco para não sujar o cabelo. Testemunhos sobre sua vida são dados por pessoas que conviveram com Cartola, assim como por moradores da favela da Mangueira, onde viveu desde os 11 anos e que lhe serviu de inspiração para compor canções antológicas, ao lado da segunda mulher, a sambista Dona Zica.

No filme não há cenas inéditas, mas registros tão pouco conhecidos que, para muitos, parecerão inusitadas preciosidades. Caso das cenas colhidas do enterro de Cartola filmado pelo fotógrafo Aloysio Raolino ou de um cinejornal da Atlântida. Os diretores recuperaram ainda algumas gravações domésticas em fita cassete, programas de rádio, jornais e filmes da chanchada das décadas de 40 e 50.
Cartola traça um painel da formação cultural do Brasil, a história de Angenor se confunde com a história da cultura popular que foi se formando a seu redor”, explica Lacerda. O único personagem de ficção do filme é um garoto, Marcos Paulo Sinião, que interpreta o próprio compositor menino, e que vai costurando a narrativa.

Foram incluídas 35 músicas recolhidas em arquivo, cantadas por Cartola e por intérpretes do nível de Elza Soares, Beth Carvalho e Elizeth Cardoso. Parece pouco, pois Cartola deixou cerca de 500, entre composições próprias e parcerias. Mas é uma boa amostra para que o talento do autor de O mundo é um moinho, As rosas não falam e O sol nascerá seja devidamente considerado. O morro serviu de cenário para a quase totalidade das gravações e, de acordo com a produtora Clélia Bessa, não foi necessário pedir autorização a traficantes, mas à Associação dos Moradores tal e qual fariam se filmassem na zona sul. “Não tivemos problemas”, afirma Clélia, deixando no ar que em parte isso ocorreu por se tratar de um filme sobre Cartola.

E a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que ajudou a fundar em 1928, de fato, é praticamente um personagem na biografia de Cartola. Entre outras coisas, foi ele quem escolheu o nome e as cores da agremiação, verde-e-rosa. Na época não foram poucos os protestos, sob a alegação de que os tons não combinavam. Mas, hoje, não há quem deixe de ver nessa combinação a forte e positiva identidade da escola. Lacerda insiste que houve uma preocupação em se manter Cartola “em seu próprio tempo.” Nos ensaios da escola de samba, por exemplo, procurou-se o formato ideal. “Não queríamos modernizar Cartola nem fazer uma reconstituição de época tradicional, diz ele. Foi feita o que chama de “reconstituição afetiva”, ou seja, as pessoas estão vestidas com roupas atuais, mas em vez do “sambão” de hoje, cantam de um modo mais “marcheado”, característico da época de Cartola. A estréia em circuito comercial está prevista para janeiro próximo. Às vésperas do Carnaval que Cartola ajudou a formatar.