06/04/2018 - 18:11
O diretor Ruy Guerra e o ator Tony Ramos deram concorrida entrevista coletiva nesta sexta-feira, 6, no começo da tarde no Cine Caixa Belas Artes. Ruy dirige e Tony interpreta o personagem principal de Quase Memória, filme adaptado do romance de Carlos Heitor Cony, que entra em cartaz dia 19.
Com o País em transe, Ruy Guerra teve dificuldade em responder a perguntas sobre a atualidade brasileira. “Tudo isso me deixa muito emocionado”, confessou. “A única coisa que posso dizer é do sentimento de indignação e da minha irrestrita solidariedade ao ex-presidente Lula”, disse.
Sobre o filme, Ruy afirmou que é a concretização de um antigo projeto, que foi se arrastando ao longo dos anos por uma questão de verbas. Ou de falta de verbas, para ser mais preciso. “Foram feitas quatro versões do roteiro, uma tentando ser mais barata que a anterior para se adequar às possibilidades da produção”, disse.
Essa adequação financeira determinou o formato e tirou da história alguns dos seus elementos principais – o jornalismo romântico dos séculos 19 e 20 e a vida no Rio antigo. Cony, em seu texto, fala da relação com o pai, jornalista como ele, num tipo de memorialismo com traços ficcionais.
Para driblar as dificuldades, o diretor partiu para uma trama imaginativa, com o encontro do personagem consigo mesmo em duas fases da vida. O jovem Carlos (Charles Fricks) dialoga com o Carlos idoso (Tony Ramos) e lembram-se da figura do pai (João Miguel), uma personalidade marcante e controversa.
Quase Memória é todo marcado por uma dimensão onírica e operística, em que o simbólico tem mais presença que o real. Não deixa de apelar para recursos surrealistas, como a narração, entregue a um sapo, e com a voz do próprio diretor. A beleza envolvente da fotografia de Pablo Baião e a emoção do relato conduzem o espectador pelas veredas do tempo.
O que significaria conversar consigo mesmo, em fases diferentes da vida? Jorge Luis Borges se colocou essa questão no extraordinário conto El Otro (de Libro de Arena) em que o Borges idoso se encontra com o Borges jovem num banco de jardim em Genebra. O narrador diz da dificuldade de duas pessoas que se conhecem tão bem conseguirem estabelecer um diálogo: “Não podem mentir uma à outra, o que dificulta a comunicação”, constata o bruxo portenho.
Tony Ramos coloca a questão de outra maneira e relembra com saudade do tempo do jovem Tony em um aspecto particular: quando podia dialogar e divergir, sem a virulência e a polarização de hoje. “Sinto falta da civilidade de antigamente”, diz, sobre esse traço de caráter que o brasileiro vem perdendo nos últimos anos.
Comentando o projeto de Ruy Guerra, Tony diz que se trata de um sensível convite à reflexão. “Há uma cena em que meu personagem se deita num sofá e esconde o rosto sob um cobertor. O que significa? Ele vai morrer? Ou é apenas um tempo para repensar a vida?”, pergunta-se o ator. “Já pendi para as duas alternativas, sem me decidir por nenhuma delas”, diz, salientando o caráter ambíguo da obra. “De qualquer forma, o filme, como um todo, é esse raro convite ao pensamento, uma pausa para a reflexão e balanço de vida”, diz o ator da TV Globo e que encarnou o fim de carreira de Getúlio Vargas no filme de João Jardim.
O diálogo do personagem consigo mesmo não está no livro de Cony. “Com a sucessiva depuração da trama, vi que o protagonista ficava sem antagonista, e por isso a coisa não andava. A solução foi torná-lo antagonista de si mesmo, em duas fases diferentes da vida”, explica Ruy Guerra. Desse modo, a história tomou novo rumo e tornou-se, também, uma reflexão sobre o tempo.