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VANGUARDA
"Paris, l’Été un Soir d’Orage" e "Satiric Dancer",
dos anos 1920: olhar inquieto

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Uma lenda comum entre os amantes da fotografia diz que Henri Cartier-Bresson (1908-2004), o grande gênio do fotojornalismo, sempre se ajoelhava ao encontrar o colega húngaro André Kertész (1894-1985). Na sequência, lhe oferecia a sua câmera e pedia que a abençoasse. A cena pode parecer afetada, mas faz todo o sentido: teria sido após o contato com o trabalho de Kertész que Bresson chegaria ao conceito de “instante decisivo”, aquele momento em que um fato se mostra em sua plenitude para as lentes do artista. Essa reverência de um mestre a outro vem à mente ao se contemplar as 189 imagens da exposição “André Kertész – Uma Vida em Dobro”, em cartaz no Museu da Imagem e do Som (Mis), em São Paulo (até o dia 24 de junho). Organizada pelo museu Jeu de Paume, em Paris, a mostra é a mais completa já feita no Brasil sobre o fotógrafo e confirma o fato de Kertész ser chamado de “o pai da fotografia moderna”.

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VAZIO
A foto "Chez Mondrian", de 1926, retrata o ateliê do
pintor holandês Piet Mondrian, amigo de Kertész

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Por que são modernas as suas imagens? Porque Kertész foi um dos primeiros a perceber que a novidade da fotografia no campo das artes visuais não era imitar a pintura, vício comum aos pioneiros que tentavam com isso dar nobreza à reprodução mecânica da realidade. O que ela trazia de inédito era justamente o oposto, ou seja, a capacidade de reproduzir a poesia e o impacto das coisas banais. Sobre a imagem de um cigano tocando rebeca numa rua de Abony, na Hungria, o ensaísta Roland Barthes escreveu que se tratava de um caso em que “a arte fotográfica supera verdadeiramente a si própria”. Esse retrato aparece no segmento que abre a exposição, o mais desconhecido de Kertész por abranger os seus primeiros anos de atividade antes de imigrar para a França em 1925. Estão lá, por exemplo, as imagens que ele fez durante a guerra austro-húngara, quando se alinhou aos soldados no front. E, mais uma vez, a predileção pelo “momento menor” surpreende: não existe nada de heroísmo, apenas o cotidiano da tropa. Ferido e convalescente em um hospital, Kertész aprendeu mais uma lição de seus retratados: antes de registrar uma garota, ela lhe pediu que a clicasse quando os seus olhos “começassem a sorrir”. Mais tarde ele comentaria: “Essa garota comum ensinou-me que o início de um sorriso é o instante mais belo. Ele esconde uma promessa.” Não seria esse o “momento privilegiado” de Bresson?

Kertész não abriu apenas essa via na fotografia moderna. Ele rompeu a representação do corpo ao dar início às chamadas “Distorções”, imagens de nus feitas a partir do reflexo do modelo em espelhos côncavos e convexos, efeito que mais tarde encantaria Bill Brandt. Explorou o claro-escuro das noites parisienses muito antes de Brassaï, o mestre da foto noturna. Além das fotografias dessas séries, a exposição exibe clássicos como “Satiric Dancer” (1926), que mostra a bailarina Magda Forstner deitada num sofá com pernas e braços imitando um catavento – composição cara aos surrealistas – e “Tulipe Melancolique” (1939), enquadrando um ramo de flor pendendo sem vida de uma jarra. Ao limpar suas obras de adereços e efeitos gratuitos, Kertész ensinou que uma boa foto não depende do assunto enfocado – se ele é dramático, violento ou poético –, mas do olhar que recorta a cena. “Sou um amador e pretendo continuar a sê-lo”, dizia ele. “Olhem as fotos dos amadores, só querem ser uma lembrança: eis a fotografia pura.”  

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SIMPLICIDADE
"La Martinique", de 1972, e "Tulipe Melancolique",
de 1939: imagens límpidas e sem adereços