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Pouco antes de ser eleito papa, Bento XVI fez a seguinte prece a Deus: “Não me faças isso.” Pedidos idênticos são ouvidos no início do filme “Habemus Papam”, do diretor italiano Nanni Moretti, e cujo enredo se desenvolve no Vaticano durante um conclave para a escolha de um novo pontífice. Reunidos sob os majestosos afrescos da Capela Sistina, os cardeais pronunciam a mesma súplica de Bento XVI – e entre eles está o francês Melville, interpretado por Michel Piccoli, a quem é destinada a tarefa de guiar os católicos. Melville entra em crise. Surta. A poucos passos da sacada que dá para a praça de São Pedro, falta-lhe a coragem de se dirigir à multidão. Solta um grito de pânico, dá meia-volta e se encerra nos aposentos papais. Ao que se assiste a seguir é um enredo ousado, que se arrisca a especular sobre as angústias de uma pessoa “escolhida por Deus” e, por extensão, o que acontece entre os muros intransponíveis da Santa Sé. A Igreja, obviamente, não gostou da novidade e adotou uma estratégia eficiente. Optou pela indiferença: melhor não falar desse filme, ele é virulento e inteligente.

“Habemus Papam”, que vem sendo exibido com sucesso em sessões de pré-estreia e tem lançamento previsto para as próximas semanas, polemiza sem fazer nenhuma menção a escândalos ou posturas conservadoras do clero. Moretti preferiu retratar um papa que duvida de sua capacidade para conduzir a Igreja Católica e, assim, discute a posição do Vaticano num mundo cada vez mais secularizado. A situação revela-se um tanto absurda, mas, em se tratando de uma comédia dramática, ela é aceita sem grandes desconfianças. Os assessores do papa, por exemplo, não suspeitam de que ele esteja passando por dilemas da fé. Veem a crise como depressão e decidem chamar o melhor psicanalista de Roma, interpretado pelo próprio Moretti. A terapia, claro, não surte efeito – para o catolicismo, o inconsciente não existe, o que temos é alma. Impedido de abandonar o local, já que pelas regras do conclave ninguém pode se ausentar enquanto o papa não se apresentar aos fiéis, o psicanalista se entrosa com os religiosos. E eles se mostram tão mundanos quanto os mais comuns dos mortais: jogam baralho, têm pesadelos, fazem uso de hipnóticos, ansiolíticos e calmantes.

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A Capela Sistina (acima) foi construída nos estúdios Cinecittá. É nela que
acontece o conclave que escolhe como papa o francês Melville (Michel Picoli, abaixo)

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Na falta do que fazer, organizam um campeonato de vôlei por sugestão do terapeuta. Imaginam que Sua Santidade está orando quando, na verdade, ele se encontra fugindo pelas ruas de Roma e termina por se envolver com uma trupe de teatro na esperança de reaver o seu sonho de juventude em ser ator.

Como desejava rodar essa história no Vaticano e, assim, economizar alguns milhões de euros, Moretti mostrou o roteiro para o encarregado da área cultural da Igreja, Gianfranco Ravasi, que torceu o nariz. A solução, então, foi reconstruir nos estúdios Cinecittá a Sala Regia e a Capela Sistina – só para reproduzir os afrescos de Michelangelo tiveram de ser utilizados 1,2 mil metros quadrados de telas. Outros interiores foram simulados no Palácio Farnese, sede da embaixada da França, e na Villa Médicis. Afora essa sensação de autenticidade, especialistas em teologia identificaram pontos em comum entre Melville e alguns papas reais. João XXIII, por exemplo, gostava de andar disfarçado pelo Borgo Pio, nos arredores do Vaticano; João Paulo II foi ator amador; e Celestino V abdicou do cargo seis meses depois de sua eleição. Resta saber se algum deles gostava da cantora argentina Mercedes Sosa, cuja música “Todo Cambia” (tudo muda) embala as melhores cenas do filme.

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