Todo mundo aprendeu na escola que d. Pedro II (1825-1891) era culto, estudioso, amante das artes e nutria profundo interesse por fotografia e outras novidades tecnolĆ³gicas de seu tempo. O que pouca gente conhece Ć© a majestosa coleĆ§Ć£o de fotos que o monarca legou Ć Biblioteca Nacional, com destaque para os registros dos vestĆgios de civilizaƧƵes antigas. Um pequeno, porĆ©m valioso recorte desse conjunto, de 35 mil itens, estĆ” na exposiĆ§Ć£o Uma viagem ao mundo antigo – Egito e Pompeia – nas fotografias da ColeĆ§Ć£o D.
Thereza Christina Maria, que a casa bicentenƔria abre na segunda-feira, 30.
Esta Ć© a primeira vez que esse material Ć© exibido na biblioteca, que recebeu a coleĆ§Ć£o em 1892, depois da morte de d. Pedro II. As 119 imagens escolhidas ilustram as passagens do imperador e da imperatriz Thereza Cristina pelo Egito e pelo sĆtio arqueolĆ³gico de Pompeia, na ItĆ”lia (terra de Thereza), entre 1871 e 1888. A maior parte, porĆ©m, Ć© de fotografias que d. Pedro II comprava de mercadores para robustecer seu acervo particular.
“D. Pedro II formou a maior coleĆ§Ć£o de documentos fotogrĆ”ficos do sĆ©culo 19 que um governante jamais teve. A da rainha VitĆ³ria, da Inglaterra, sua conterrĆ¢nea, por exemplo, nĆ£o Ć© significativa”, diz o historiador de fotografia Joaquim MarƧal, curador da mostra. “Ele era Ć³rfĆ£o de mĆ£e desde um ano de idade, e perdeu o pai aos nove. Foi educado por um grupo de tutores e mestres que lhe proporcionaram sĆ³lida formaĆ§Ć£o. Tornou-se um humanista, fascinado pela histĆ³ria do nosso passado. Sabia que o homem pode aprender muito assim.”
A exposiĆ§Ć£o desnuda diferentes processos fotogrĆ”ficos desenvolvidos a partir dos anos 1820-1830, como o daguerreĆ³tipo, e de reproduĆ§Ć£o, caso do papel albuminado, que usava a proteĆna extraĆda da clara do ovo. FuncionĆ”rio da BN desde os anos 1980, MarƧal participou do grupo que primeiro se ocupou do material, e trabalhou na exposiĆ§Ć£o de 2003. A maioria dos registros, ele garante, ninguĆ©m nunca viu.
Se atĆ© hoje nos perguntamos como os egĆpcios conseguiram erguer as pirĆ¢mides, no sĆ©culo 19 a curiosidade e o deslumbramento pelas populaƧƵes do Oriente MĆ©dio, seus hĆ”bitos e conhecimentos de arquitetura eram ainda maiores. As expediƧƵes fotogrĆ”ficas da Europa para lĆ” eram frequentes, e o comĆ©rcio das imagens resultantes aguƧava o apetite do imperador colecionista.
A exposiĆ§Ć£o propicia uma imersĆ£o na antiguidade. PirĆ¢mides, esfinges e monumentos erguidos pelos povos estabelecidos Ć s margens do rio Nilo, por volta do ano 5000 a.C., e que desenvolveram a primeira civilizaĆ§Ć£o conhecida da histĆ³ria da humanidade; as ruas reveladas pelas escavaƧƵes em Pompeia, os corpos das pessoas soterradas pela erupĆ§Ć£o do vulcĆ£o VesĆŗvio, no ano 79 d.C. – tudo estĆ” documentado em fotografias de qualidade impressionante. Em dois registros jĆ” conhecidos, d. Pedro II e d. Thereza aparecem junto Ć esfinge egĆpcia de GizĆ©, em 1872, e em meio a ruĆnas em Pompeia, em 1888.
O deleite de d. Pedro II em suas aventuras de navio estĆ” descrito em seus diĆ”rios, nos quais desenhava em detalhes o que mais lhe impressionava. Alguns trechos foram destacados na exposiĆ§Ć£o. “Ćs 7 ancoramos perto da margem esquerda e um pouco a montante de Manfalout (no Egito). Esteve admirĆ”vel o crepĆŗsculo com os seus matizes esverdeados e vermelho-claro. (…) Antes de dormir, estudo a gramĆ”tica hieroglĆfica de Brugsch”, escreveu em 1876, citando o cĆ©lebre egiptĆ³logo alemĆ£o Heinrich Karl Brugsch.
“Desembarcando Ć s 6 Ā½ , parti montado em burrico, de modo muito caracterĆstico – o cavalo e o camelo sĆ³ figuram nos monumentos egĆpcios depois da dĆ©cima dinastia (3000 a.C.)”, diz outra anotaĆ§Ć£o, digna de um estudioso do assunto.
“D. Pedro II nĆ£o fazia turismo. Para ele, toda e qualquer viagem tinha status de expediĆ§Ć£o, na qual procurava desvendar as questƵes levantadas a partir das leituras e estudos de escritĆ³rio”, explica MaurĆcio Vicente Ferreira Jr., diretor do Museu Imperial, que fica no palacete de PetrĆ³polis que era a residĆŖncia de verĆ£o de d. Pedro II, e que guarda o principal acervo do PaĆs relativo ao impĆ©rio brasileiro (lĆ” estĆ£o os diĆ”rios).
“Eles revelam o interesse de um cientista amador apaixonado pelas civilizaƧƵes da Antiguidade. Nas duas viagens ao Egito, em 1871 e 1876, ele foi acompanhado de dois egiptĆ³logos famosos, Brugsch e (o francĆŖs) FranƧois Auguste Ferdinand Mariette, para debater sobre as pirĆ¢mides, os hierĆ³glifos e temas da cultura local. Na viagem de 1876, por exemplo, visitou as 18 pirĆ¢mides do Baixo Egito, com outros especialistas.”
Trancados em caixas metĆ”licas acondicionadas na biblioteca por longos cem anos, sem qualquer manuseio, os Ć”lbuns de d. Pedro II sĆ³ vieram Ć tona em 2003, na mostra de nome autoexplicativo De volta Ć luz, em SĆ£o Paulo. Da morte dele, em 1892, quando se oficializou a entrega, atĆ© o sĆ©culo seguinte a catalogaĆ§Ć£o dos guardados nĆ£o havia despertado interesse na casa, e tambĆ©m faltavam recursos para tratĆ”-los com os cuidados de que necessitam.
Composta tambĆ©m de livros, periĆ³dicos, mapas, estampas e partituras, a ColeĆ§Ć£o D. Thereza Christina Maria foi a maior doaĆ§Ć£o feita Ć BN, fundada como Real Biblioteca em 1810, dois anos apĆ³s a chegada do avĆ“ de d. Pedro II, d. JoĆ£o VI, ao Brasil. Ć tĆ£o relevante que foi incluĆda pela Unesco no Registro Internacional da MemĆ³ria do Mundo.
A presidente da BN, Helena Severo, acredita que o pĆŗblico que visita o prĆ©dio da CinelĆ¢ndia (centro do Rio) tem interesse especial nos documentos raros que ele guarda. “ExposiƧƵes como essa aumentam nosso pĆŗblico”, conta Helena. “AlĆ©m das pessoas que frequentam nossas instalaƧƵes para pesquisar ou apenas para ter contato com o prĆ©dio histĆ³rico, hĆ” um interesse especial em torno de documentos raros do acervo. Ć importante tirar essas obras da reserva tĆ©cnica, como fazem todas as bibliotecas nacionais do mundo.” A exposiĆ§Ć£o fica em cartaz atĆ© 30 de janeiro, e deve receber cinco mil pessoas.
As informaƧƵes sĆ£o do jornal O Estado de S. Paulo.