Assim como Bingo – O Rei das Manhãs foi escolhido pelo Brasil para tentar uma vaga no Oscar, outros filmes que também estão em cartaz nos cinemas brasileiros também foram indicados por seus países para concorrer com o longa de Daniel Rezende. O Chile indicou Uma Mulher Fantástica, de Sebastian Lelio, e a Bulgária, Glory, da dupla Kristina Grozeva e Petar Valchanov, que estreou na quinta, 14, no Belas Artes, distribuído pela Pandora. Justamente na quinta, Valchanov conversou pelo telefone com o repórter. Comentou o Oscar – “É sempre uma grande vitrine, principalmente para um país como o meu (a Bulgária), que ainda está retomando a produção.”
Kristina e Valchanov formaram-se na Escola Nacional de Cinema de Sófia. Fizeram curtas que foram selecionados para grandes festivais do formato e estrearam no longa em 2014 com A Lição, também distribuído no Brasil pela Pandora. Glory é o segundo longa da dupla. Com o anterior, integra o que está programado para ser uma trilogia. “É a nossa trilogia das notícias de jornal”, define Valchanov. “Confesso que acompanho pouco o noticiário do Brasil, mas o que vejo nos jornais é que o país está em guerra contra a corrupção. É um tema que nos interessa muito. O fim do comunismo e o reingresso da Bulgária no capitalismo geraram uma corrupção sem fim. O assunto banalizou-se, todo dia uma nova denúncia. Nesse quadro lemos a notícia no jornal sobre o operário dos transportes que havia sido condecorado por devolver dinheiro que encontrou na linha de trens.”
A notícia dava conta só disso – o operário ganhou um relógio. Todo o restante que aparece no filme é ficcional. O operário é utilizado pela máquina do Estado, e pela assessora de imprensa do ministro dos Transportes, que está sendo acusado de corrupção. A própria assessora é uma carreirista que usa o cargo sem nenhuma preocupação com a ética. Está num momento delicado – tentando, mais por pressão do marido, ter um filho. Nesse quadro, o relógio que o operário ganha não funciona, e ele tenta recuperar o antigo, que se perdeu. Um típico absurdo kafkiano. Seria engraçado, se as consequências não fossem trágicas.
E Valchanov conta que, assim como a notícia de jornal foi só um ponto de partida, o próprio roteiro concluído sofreu uma transformação muito grande quando Kristina e ele tomaram uma decisão – “Na verdade, a grande sacada desse filme foi que o assessor, originalmente, era um homem e seria interpretado por Stefan Denolyubov, que faz o operário, Petrov. O problema foi que não encontrávamos o ator para Petrov, tal como víamos o personagem. O único capaz de fazê-lo era Stefan. Já que íamos fazer essa mudança, pensamos – por que não incrementar o assessor fazendo dele uma mulher? Se fosse um homem, tudo o que faz seria considerado típica canalhice masculina. Uma mulher, refazendo a trajetória do homem, com atitudes masculinas, coloca a questão do gênero. Imagino que, no Brasil, não seja diferente. Em vez de fazer dela uma vilã, queríamos que fosse outra espécie de vítima.”
Para fazer Julia Staikova, Kristina e Valchanov chamaram Margita Gosheva, que fazia a professora em A Lição. “O que propusemos a Margita foi uma inversão, porque a personagem dela em A Lição era o oposto dessa assessora. Gostamos de trabalhar com os mesmos atores, mas nunca repetindo papéis, o que ficaria muito fácil para todo o mundo. Queríamos que Petrov tivesse algum tipo de deficiência, mas Stefan foi muito além do que imaginávamos. O gago que ele cria, com sua dificuldade de se comunicar, já nos deixava angustiados no set. Na tela, vulnerabiliza ainda mais, e era o que queríamos. Que nossa história ficasse cada vez mais complexa.”
Para o próximo filme, e mantendo as amizades seletivas, Kristina e Valchanov vão fazer do ministro o protagonista. O diretor está contente com os rumos da carreira. “Havia um cinema búlgaro sob o comunismo, mas o sistema de produção foi desmantelado e os multiplex ocuparam o mercado. Tivemos muitas dificuldade para voltar a financiar nossos filmes, mas há agora uma nova geração de autores comprometida em fazer um cinema que espelhe a realidade. Glory é sobre o que há de predatório na nossa sociedade. E, para os búlgaros, o relógio, da marca Glory, possui um significado que nenhum estrangeiro consegue captar. O Glory dava a medida do nosso tempo sob o comunismo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.