Estou legalmente na Alemanha e não deveria ter o que temer. Mas como se sentir bem quando a pauta anti-imigração está em alta no país e no mundo?No domingo passado (26/01), quando vi as imagens dos brasileiros saindo algemados e em fila de um voo que os trouxe deportados dos Estados Unidos para o Brasil, senti um embrulho no estômago. Esse não é o tratamento que nós, que acreditamos que seres humanos devem ser tratados com dignidade, esperamos ver. E dói ainda mais ver isso acontecer com brasileiros, nossos compatriotas.
Bem, pelo menos isso é o que eu sinto. Em tempos de justiceiros e faroeste nas redes sociais, há quem manifeste com fúria sentimentos diferentes. Enquanto alguns dos deportados denunciavam que teriam recebido agressões físicas de oficiais americanos durante o voo que os trouxe dos Estados Unidos para o Brasil, outros comemoravam. A frase "Parabéns, Trump", ficou em primeiro lugar nos trend topics do X no Brasil. "Parabéns, Trump, os brasileiros honestos te parabenizam" disse um deles e postou junto uma bandeira americana. "Vamos celebrar a estupidez humana, a estupidez de todas as nações", dizia uma velha música da Legião Urbana, atualíssima. Afinal, o que explica alguém comemorar quando um cidadão do seu país é tratado de maneira medieval?
Entre os que "comemoravam como idiotas", vi também gente "progressista". Nesse caso, a ideia era: "Se votou em Jair Bolsonaro e apoiou o Trump, merece". Discordo completamente. Ninguém merece. Tratamento humano vale para todos. Não há nada a se celebrar nessa desgraça toda.
Onda anti-imigrantes na Alemanha
O sentimento contra a imigração não existe só nos Estados Unidos. Essa é uma pauta cada vez mais forte no mundo, inclusive na Alemanha. Acho que quem é imigrante (sou uma delas, moro há quase dez anos na Alemanha) sente um horror especial diante disso. Esse pavor atinge mesmo quem (como é o meu caso) é totalmente legalizado no país para onde migrou. Tenho um visto permanente, que é uma espécie de um green card, e meu processo de cidadania está em curso. Na teoria, não tenho o que temer. Mas como se sentir bem quando a pauta anti-imigraçã está em alta no país e no mundo?
A menos de um mês das eleições federais no país (que acontecem em 23 de fevereiro), a imigração é uma das pautas principais da campanha eleitoral e a principal bandeira da AfD, o partido de ultradireita que ocupa o segundo lugar nas pesquisas.
Na Alemanha, o sistema de governo é o parlamentarismo de coalizão, o que significa que partidos precisam fazer coalizões com outros para formar uma maioria para governar. Todos eles se comprometeram a não se unir com a AFD, esse é o chamado brandmauer (muro de contenção), um cordão sanitário para impedir que a extrema direita chegue ao poder. Isso dá um alívio e tanto.
Mas, a poucos dias das eleições, o candidato favorito, Friedrich Merz, líder da aliança conservadora formada pelos partidos CDU e CSU, sugeriu que poderia aceitar apoio da AfD para aprovar no parlamento medidas duras contra a imigração."Não olho para a direita nem para a esquerda", disse Merz. "Quando se trata desses assuntos, só olho para frente", afirmou.
O aceno provocou fúria nos partidos que normalmente compõem coalizões com a CDU, como o SPD e o Partido Verde.
No fim de semana, mais de 100 mil pessoas foram às ruas em várias cidades da Alemanha se manifestar contra qualquer tipo de aliança com a extrema direita, contra Donald Trump e também Elon Musk, que faz campanha para a AfD. A imigração é um dos temas que une esses radicais.
"Bilhetes de deportação"
Nós, que temos todos nossos papéis em dia, nos sentimos mal porque isso aumenta claramente a xenofobia nas cidades em que moramos.
Há algumas semanas, estrangeiros que moram em Karlsruhe, cidade no estado de Baden-Württemberg, receberam pelo correio panfletos da AFD que imitavam passagens aéreas, como se fossem "bilhetes de deportação". E, no verão do ano passado, uma música infame que dizia "Alemanha para os alemães, e estrangeiros fora" se tornou uma espécie de hit de verão entre certas classes na Alemanha (apesar de ser proibida). Não há visto ou passaporte alemão que salve um imigrante de se sentir mal ao ouvir uma coisa dessas.
São tempos realmente difíceis para todos nós, imigrantes. Só não vê quem prefere entrar em negação ou tripudiar quem é vítima de tratamento desumano.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.