Entrevista com Fernanda Torres: "Eu poderia ter sido uma das crianças de 'Ainda estou aqui'"

Em entrevista à DW, atriz Fernanda Torres destaca que filme de Walter Salles sensibiliza pessoas de diferentes posições políticas sobre a ditadura militar.Nunca uma brasileira havia ganhado o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Drama. Em 1999, Fernanda Montenegro foi indicada pela atuação em Central do Brasil, de Walter Salles, que poderia ter lhe valido um Oscar. Mas o prêmio das associações de imprensa de Hollywood teria que esperar 26 anos para ser entregue à sua filha, por um filme do mesmo diretor: Ainda estou aqui, sobre a saga da família de Rubens Paiva no Rio de Janeiro dos anos 70, após a prisão e desaparecimento do ex-deputado.

Em entrevista à DW por e-mail em meio à maratona de divulgação do filme nos Estados Unidos, Fernanda Torres falou de sua gratidão a Eunice Paiva, que ela encarna no filme; da honra de estar ao lado de outras atrizes como Tilda Swinton, Kate Winslet ou Demi Moore; e de seu "pessimismo" quanto às perspectivas de concorrer ao Oscar.

Torres falou ainda do atual "momento distópico" do mundo; da tensão política esquerda-direita no Brasil, de democracia. E do "choque" ao perceber sua proximidade biográfica em relação às crianças daquela família, que perderam o pai nas mãos dos torturadores da ditadura militar. "Meu irmão foi assistir ao filme, e falou: 'Nanda, é a nossa casa.'"

Confira abaixo a entrevista.

DW Brasil: Em 5 de janeiro do 2025, você ganhou o prêmio de Melhor Atriz de Drama no Globo de Ouro por sua atuação como Eunice Paiva no filme Ainda estou aqui. No dia 23 (quinta-feira) sai a lista dos indicados pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Ganhar o Globo de Ouro aumenta suas chances de ser indicada à estatueta de Melhor Atriz? Ou você continua "pessimista" em relação à sua indicação ao Oscar? Por quê?

Fernanda Torres: Eu sou pessimista por natureza porque eu odeio alimentar expectativa e depois me frustrar. A gente foi fazendo esse filme assim, um dia atrás do outro, e ele já nos levou a tantos lugares incríveis. Ele já levou mais de 3 milhões aos cinemas no Brasil, já colocou nos cinemas pessoas de diferentes credos, diferentes posições políticas, em torno da questão da suspensão dos direitos civis, adolescentes entendendo o que é realmente viver numa ditadura militar, então eu não sou pessimista deprimida, eu sou pessimista feliz.

Eu saí do palco com o Golden Globes, e tinha uma entrevista nos bastidores e o repórter já me perguntou do Oscar. Eu não sei se as minhas chances aumentam ou diminuem porque quem vota no Oscar são atores, quem vota no Golden Globes são críticos. É claro que esse prêmio aumenta a curiosidade sobre quem é o azarão que levou o Golden Globes, e mais atores, espero, vão ver o filme e talvez se sintam inclinados a me colocar entre as cinco.

Mas é um ano de grandes performances femininas, como eu falei no palco. É um ano de interpretações femininas de mulheres maduras, o que é muito legal. Tenho uma honra imensa de estar entre aquelas mulheres incríveis: Tilda Swinton, Nicole Kidman, Kate Winslet, Pamela Anderson, Demi Moore, que fez um discurso deslumbrante no prêmio. Então eu realmente, eu não sei o que virá porque agora são outros votantes e o fogo em Los Angeles também interrompeu uma série de sessões que a gente faria. Então não sei realmente o que virá, mas o que vier será bem-vindo.

Em entrevista ao Valor Econômico, o diretor do filme, Walter Salles, disse que, com sua atuação, você "convidou diferentes públicos, incluindo o jovem, a refletirem sobre a ditadura e a sociedade que queremos ser no futuro. Ao mesmo tempo, presta homenagem à criatividade brasileira nos memes, o que me faz lembrar do humor do gênio Millôr Fernandes". Como vê a repercussão de Ainda estou aqui entre o público jovem brasileiro? E o que isso significa numa era digital, onde as pessoas dessa faixa etária interagem menos presencialmente?

Esse fenômeno aconteceu na minha vida, porque muita gente não era nem nascida quando eu fiz Os Normais, quando eu fiz a Fátima e Sueli [a dupla que fez com Andréa Beltrão na série Tapas e beijos (Fernanda era Fátima e Andréa, Sueli)], que foram duas das séries na televisão que me tornaram muito popular. E muita gente só me conhecia dessas séries.

Os que não eram nem nascidos me conheceram por causa dos memes que essas séries inspiraram, se tornaram meus fãs de alguma maneira ou tomaram conhecimento da minha existência. Então os memes realmente me deram uma 'sobrevida' entre os mais jovens.

Além de mim tem o Selton Mello, que é um tipo de ator muito parecido comigo: eu escrevo, ele dirige; a gente faz comédia, faz drama, faz cinema, teatro. Então nós dois somos duas figuras muito queridas no Brasil, e que os jovens conhecem pelas maneiras mais diferentes.

Hoje em dia, as pessoas interagem muito através do celular e menos presencialmente. Isso é uma das coisas lindas desse filme: as pessoas sentiram a necessidade de ir até o cinema ter a experiência coletiva nas salas, que é diferente de ver um filme na sua casa. A experiência de assistir um filme numa sala cheia e ter um impacto coletivo, dá uma terceira dimensão e um outro significado ao filme.

Muita gente nova que cresceu na democracia foi ao cinema porque, de repente, escutou falar da "ditadura militar", mas isso era um nome que não tinha muito sentimento envolvido.

Mas no filme você sente a perda daquela família. Você sente a perda daquele pai, a perda da alegria daquela casa. Isso é uma coisa que as pessoas experimentam, e a gente deve isso ao diretor extraordinário, impressionista e profundamente sensível que é o Walter.

Então as pessoas entendem o que é suspensão dos direitos civis, não através de um parágrafo num livro de história da escola, mas através da identificação com os jovens daquela família. E isso realmente fez diferença no Ainda estou aqui. Eu acho que ele teve um sentido de consciência cívica, através da família Paiva, que impactou os jovens. Isso é muito legal.

Depois de uma sessão do filme em Palm Springs (EUA), Walter Salles declarou, respondendo a uma pergunta do moderador, que um eventual boicote da direita ao filme no Brasil "não funcionou". Você acrescentou dizendo que houve quem escrevesse para vocês explicando que não sabia o que estava acontecendo com ele porque era de direita e tinha se emocionado com o filme. Ainda estou aqui conseguiu despir os brasileiros de suas divergências ideológicas? Que papel o filme em si, ou o cinema no geral, exerce para conseguir essa façanha?

A gente está vivendo um momento distópico do mundo, né? Um momento apocalíptico, de muito medo, e acho que quando isso acontece, a ideia de que um governo autoritário, como um "pai autoritário'" – que talvez ponha ordem na casa – cresce.

E o que aconteceu é que muitos jovens, os que cresceram na democracia, e muita gente que viveu o período do milagre econômico – que faz muito tempo – se esqueceu da crise econômica dos anos 80, que se seguiu ao governo militar no Brasil. Então muitas pessoas mais velhas sentem saudades e muitos jovens passaram a acreditar que talvez uma uma economia liberal com "um pouco" de ditadura, ou um "pouco menos" de democracia, traria um futuro melhor para o país.

Eu acho que a democracia não resolveu as nossas grandes mazelas – a desigualdade social; a crise na escola pública, (que, aliás, começou durante o governo militar); a crise na saúde. Mas ela nos trouxe muitas outras coisas.

Muitas pessoas passaram a achar que talvez a democracia fosse a culpada desses problemas, e acho que um filme como esse, através da empatia, da identificação, faz com que a arte produza nas pessoas um sentimento com relação aquela família, permitindo entender o que a violência de Estado provoca. Isso o filme trouxe.

A fala do cara que se dizia de direita, mas que não entendia porque estava tão tocado pelo filme, é por isso, acho. O filme, ao longo da sua trajetória no Brasil, amainou um pouco o caráter binário dos últimos anos de que ou você só pode ser de direita ou de esquerda, e trouxe a discussão um pouco mais para o senso comum de que ninguém aqui gostaria de viver num país sob censura ou que não respeite os direitos humanos e os direitos civis.

Há quem diga que não se deve politizar o Globo de Ouro. No entanto, Ainda estou aqui é um filme político. O próprio presidente Lula, na cerimônia que marcou os dois anos dos ataques golpistas de 8/1, declarou: "Hoje é dia de dizer em alto e bom som: ainda estamos aqui". Em algum momento, você imaginou que o filme ganharia essa repercussão? A que você atribui esse sucesso? E como vê a declaração do presidente Lula?

Primeiro eu quero dizer que você não precisa ser Lula ou não ser Lula. Acho que eu e todos os envolvidos neste filme somos pela democracia. E eu acredito na alternância de poder, que é a base da democracia. O que aconteceu nos últimos anos, que desde a crise de 2008 começou a ser desenhar, foi a ultra extrema direita muito organizada para alimentar o ódio nas redes sociais.

Eu, pessoalmente, sonho pela volta um pouco mais ao centro. Mas o Lula é uma figura importante da nossa luta democrática. Fernando Henrique Cardoso estava orgulhoso quando passou a faixa para o Lula. Ele tem uma história alinhada com a democracia.

Então eu acho que o Lula prestar uma homenagem a esse filme faz sentido, isso não quer dizer que o filme seja pró-Lula ou anti-Lula. Eu acho que a Eunice Paiva reconhecia no Lula uma força democrática e isso é legítimo. Ele é o presidente e tem o direito de prestar uma homenagem a esse filme, à família Paiva, ao Rubens Paiva, assim como qualquer brasileiro, assim como o cara de direita que se sentiu emocionado com o filme.

Ainda lembra da primeira coisa que passou pela sua cabeça ao receber o convite do Walter Salles para interpretar Eunice Paiva em Ainda estou aqui? Era um daqueles convites irrecusáveis que simplesmente não dá para recusar ou, por um motivo ou outro, você pediu alguns dias para pensar? O que mais chamou sua atenção no filme como um todo ou no papel em particular?

Walter já estava pensando em mim, mas eu não sabia, e ele foi me dar o roteiro. Eu fiquei encantada com o roteiro. Eu já tinha lido o livro, que daria quatro temporadas de série, porque ele descreve todo o período do golpe de 64, depois a prisão, tortura e morte do Rubens Paiva e a visão da família sobre aquilo, depois tem o acidente do Marcelo e, finalmente, ela [Eunice Paiva], já uma advogada defendendo as causas indígenas e os direitos humanos e participando da Constituição do Brasil, recebendo o atestado de óbito. Então seria uma temporada de 40 capítulos, quatro temporadas de 10 capítulos, né?

Assim que o livro saiu eu corri para ler porque sou amiga do Marcelo, sou fã dele há muitos anos e sempre quis entender o que tinha acontecido com o Rubens, porque tudo o que a gente tinha do pai do Marcelo era uma foto e a notícia de que ele tinha sido torturado e morto pela ditadura militar, mas eu não sabia os detalhes.

Eu amei o livro e fiquei muito surpresa com a eficiência do corte que o roteiro fez. Disse isso ao Walter e um dia ele me chamou para tomar um café e me convidou para fazer a Eunice. Eu fiquei chocada, porque eu não achava que o encontro era para isso.

No ato eu aceitei, porque era tudo muito emocionante: voltar a trabalhar com Walter, num filme em que também estava a minha mãe… Era um pouco uma junção do Terra estrangeira com Central do Brasil, 30 anos depois. Era uma espécie de alinhavo na nossa vida. Tudo muito emocionante e o que eu fiz foi cair dentro.

Até antes da primeira leitura, eu, sozinha, peguei um coach para mim e fui me preparar para fazer a primeira leitura, porque senti o peso da responsabilidade de encarnar essa mulher.

O que mais me surpreendeu no filme, a primeira vez que eu assisti, foi que nós não parecíamos estar atuando, que aquela casa parecia real. O filme tinha algo de documentarista do Walter, e eu me lembrei de como ele perseguiu isso ao longo de toda a feitura. Ele não queria roupas e uma casa que parecessem ficção. Como ele tinha vivido naquela casa, ele tinha na memória algo muito real daquelas pessoas, e ele não queria fazer ficção, sabe? E às vezes você pode cair nesse erro num filme sobre os anos 70: você acaba fazendo a ficção dos anos 70.

O que me chocou no filme é que eu poderia ter sido uma daquelas crianças. Meu irmão foi assistir ao filme, e falou: "Nanda, é a nossa casa." A minha adolescência foi num carro como aquele da menina no início do filme, eu era uma daquelas crianças, a minha mãe parecia a Eunice Paiva.

Tudo isso era muito, muito fiel no filme. E me impressionou que eu não estivesse parecida comigo, que eu parecesse outra pessoa, que o Selton parecesse tanto o Rubens Paiva, e que, no final, quando as fotos da família entram, não houvesse um pulo entre "Ah, então essa pessoa é aquela". Não. A gente parecia aquelas pessoas, então isso foi o que mais me chocou, que o Walter tenha feito um filme onde ele quase desaparece.

O filme também não te empurra com a música, não empurra com a câmera. O Walter quase some como diretor, e isso é uma obra extraordinária de um diretor – ter a capacidade de sumir, de criar algo que você toma como verdade. Isso é mérito do Walter, absolutamente. Acho que fiquei muito chocada com ele.

⁠Em novembro de 2024, um ano depois do fim das filmagens de Ainda estou aqui, você compartilhou em seu perfil numa rede social a visita que fez à sepultura da Eunice Paiva (1929–2018), em São Paulo. O Marcelo Rubens Paiva disse que, de onde estiver, a mãe dele deve estar "feliz" e "orgulhosa" com o seu sucesso. Se você pudesse dizer algo a Eunice hoje, o que diria?

Eu passei quase um ano na pele da Eunice Paiva. A gente filmou toda uma parte em que ela tem Alzheimer – que foi cortada do filme – e que foi mais um mês de filmagem. Não é nada espiritual, sobrenatural, mas eu senti a presença da Eunice em mim, como se ela estivesse ali pela própria recuperação da memória do gestual, da história dela.

No último dia de filmagem, estava chovendo em São Paulo, e eu falei "eu tenho que ir lá no túmulo dela agradecer". Eu fui sozinha, demorei a achar. Eu fiquei tão emocionada quando achei, porque mais de uma vez durante o filme, eu senti a presença dela em mim. E repito, não de forma sobrenatural, mas pelo próprio esforço de recriá-la.

Eu acho que se tem algo que a gente fez nesse filme foi tentar não transformar a vida dela num melodrama, tentar ser fiel ao desejo dela de estar inteira, com a espinha no lugar, acreditando e apostando na vida, mesmo vivendo uma tragédia grega, que é o que ela vive e viveu mais de uma vez.

Então, o que eu gostaria dizer para a Eunice é que nós tentamos ser fiéis a ela e que agradeço muito por tudo o que ela me ensinou, porque todo o processo de contenção, de interiorização, o sorriso que ela me obrigou a ter, a feminilidade que ela me obrigou a ter, eu acho que ela me mudou como atriz.