Viagens de luxo patrocinadas, 60 dias de férias – elite do Judiciário brasileiro abusa de seu poder. Isso não só prejudica a reputação da Justiça como também enfraquece a democracia.Bruno Carazza é jornalista, advogado e economista. Em seu mais recente livro, chamado O país dos privilégios, ele descreve meticulosamente como, nos 36 anos de democracia brasileira, juízes e promotores públicos ascenderam a uma elite de funcionários públicos com salários altíssimos e privilégios como os da corte portuguesa na época colonial.
Carazza sabe do que está falando. Ele mesmo trabalhou para o Estado. Hoje, ele diz que a mentalidade de autosserviço do Judiciário não está apenas prejudicando a reputação da Justiça, mas também a da democracia como um todo.
Pois, por um lado, o Supremo Tribunal Federal provou recentemente ser um garantidor da democracia. Tanto durante as tentativas do ex-presidente Jair Bolsonaro de questionar o resultado das eleições de 2022 quanto quando seus apoiadores invadiram a Praça dos Três Poderes após a eleição perdida, o STF desempenhou um papel importante na defesa do Estado de Direito.
Mas nepotismo e favorecimentos tornam o Supremo alvo de críticas.
Vantagens difíceis de justificar
Os privilégios e as vantagens são difíceis de serem justificados. Por exemplo, os juízes e promotores que atuam no serviço público têm 60 dias de férias por ano, o dobro dos trabalhadores brasileiros. Os magistrados explicam isso com uma carga de trabalho extraordinária. No entanto, o estresse não impede que a maioria dos 30 mil juízes e promotores públicos venda grande parte de suas férias. Em vez de tirar as folgas, eles continuam a trabalhar e recebem o pagamento das férias, mais o salário normal – tudo isento de impostos.
Os juízes recebem subsídios para moradia, alimentação, transporte, vestuário, despesas com funeral e tratamento odontológico. No Rio de Janeiro, até três filhos ou dependentes de servidores do TJ-RJ recebem uma ajuda de custo para pagar a matrícula e gastos com uniforme ou material escolar.
A proliferação de privilégios ocorre mesmo com um excelente salário de juízes no Brasil.
É que a remuneração máxima para um funcionário público é limitada por lei ao salário do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, de acordo com o chamado teto constitucional do funcionalismo público, ninguém pode ganhar mais do que um ministro do Supremo. Atualmente, esse teto equivale a algo em torno de R$ 40 mil por mês. Com uma renda média no Brasil de cerca de R$ 2,5 mil, é um belo salário.
Mas não parece ser suficiente para os magistrados. Por isso, eles inventam constantemente novos subsídios especiais isentos de impostos. O resultado: 93% dos juízes e promotores públicos ganharam mais do que um ministro do STF em 2023, de acordo com Carazza.
Descumprir essa norma constitucional ganhou roupagem legal, por meio de resoluções do Conselho Nacional de Justiça e decisões judiciais às vezes proferidas pelos próprios tribunais. Verbas extras podem ser recebidas de forma retroativa e não entram na conta do teto. O problema é que, mesmo com esse aval da Justiça, esse acúmulo de privilégios é extremamente questionável, além de moralmente condenável.
Resistência
Os juízes e promotores públicos resistem obstinadamente se alguém tentar vigiar seus ganhos – seus negócios são lucrativos demais para que sejam expostos.
É isso que Bruno Brandão, da Transparência Internacional, está vivenciando no Brasil. A organização não governamental, cuja sede global fica em Berlim, está representada no Brasil desde 2014. A partir de fevereiro, será dirigida pela primeira vez por uma mulher brasileira, Maíra Martini.
Os investigadores de corrupção conhecem a árdua luta do Judiciário por experiência própria. Dizem que, repetidamente, os tribunais de todos os níveis tentam atrapalhar o trabalho da organização. "Nossos honorários advocatícios [despesas] constituem uma parte grande e crescente de nosso orçamento", diz Brandão.
Inicialmente, os juízes de Brasília apoiaram as investigações anticorrupção das autoridades no caso da Lava Jato. Mas, depois, ministros do Supremo também começaram a aparecer em delações, como supostos beneficiários de empresários corruptos. Quando, de repente, eles próprios se tornaram alvo das investigações, os processos passaram a sofrer forte resistência. E logo o STF anulou as sentenças – com argumentos frágeis e apesar das sólidas provas e confissões de todos os envolvidos.
A elite do Judiciário brasileiro, que estudou nas mesmas três universidades e pertence aos mesmos grupos, se conhece. Todos sabem quais cônjuges, filhos ou parentes dos ministros do Supremo estão atuando como advogados em escritórios de advocacia cujos casos estão sendo julgados nas instâncias superiores do Judiciário. Assim, dificilmente é possível provar que o juiz é corrupto, mas sua família se beneficia das sentenças.
Sociedade paga o preço
"O problema é que ninguém controla os juízes", diz Brandão, da Transparência Internacional. Os conselhos criados especificamente para monitorar os juízes se transformaram em grupos de interesse da elite judicial.
A sociedade brasileira está pagando um preço alto pelo sistema judiciário descontrolado, com excesso de privilégios e movido por interesses: no Índice de Corrupção 2023 publicado pela Transparência Internacional, o Brasil ocupa a 104ª posição entre 180 países – e a tendência é de queda. Isso é significativamente pior do que países emergentes comparáveis, como China (76), África do Sul (83) ou Índia (93), que são conhecidos por sua corrupção.
Os privilégios não constituem um tema a ser abordado, na visão dos ministros do Supremo brasileiro. Não há necessidade de um código de conduta para seus membros, como nos EUA, explicou recentemente o ministro Alexandre de Moraes, do STF. "Os ministros do Supremo já se pautam pela conduta ética que a Constituição determina."
Mas há razões para duvidar disso.
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Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.
O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.