O ano de 2024 no Congresso Nacional poderia inspirar a trama de uma grande novela das 20h, com disputas, recados, emoções, intrigas e alívio (para o governo). E, claro, como toda novela precisa de um vilão, alguns parlamentares nomearam o Supremo Tribunal Federal (STF) para o papel.
Tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal concentraram seus esforços em pautas econômicas, como a regulamentação da reforma tributária e, mais para o fim do ano, o pacote de gastos. Entre idas e vindas, os textos, após muita discussão e resistência, foram aprovados, aliviando o Palácio do Planalto, especialmente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Mas o sucesso dessas pautas não teve um caminho fácil. O governo precisou ceder, e muito, aos deputados e senadores, enquanto via os acenos ao conservadorismo tomarem o protagonismo em um momento sensível para o Planalto, com pautas antiaborto e até contrárias ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viu-se no centro do impasse sobre as emendas parlamentares. O bloqueio dos valores levou o Congresso a enviar recados duros ao terceiro andar do Palácio, travando o andamento de projetos prioritários.
Paralelamente, a decisão do ministro Flávio Dino jogou gasolina nas chamas já existentes na relação entre o STF e os congressistas. Incomodados com as interferências do Judiciário em pautas como aborto e drogas, além da abertura de inquéritos contra parlamentares, deputados e senadores passaram a atacar Dino nos bastidores, prometendo pautas para conter as decisões monocráticas — nenhuma das quais avançou.
Nas decisões, Flávio Dino cobrou transparência e exigiu um projeto para determinar a rastreabilidade dos valores, o que foi prontamente atendido pelos congressistas interessados na liberação dos pagamentos. Mesmo com o projeto aprovado, o Congresso encontrou uma manobra para manter ao menos uma das emendas com rubricas secretas.
Entre bloqueios e desbloqueios, Dino liberou parte das emendas, mas manteve bloqueada exatamente a parcela que era alvo da manobra dos deputados, arrastando o capítulo final até o último momento do ano. E há previsão de uma segunda temporada, com estreia marcada para a primeira semana de janeiro.
O trator de Lira e a reforma tributária
Na primeira metade do governo Lula 3, o Ministério da Fazenda ganhou um protagonismo maior que até mesmo outras pastas palacianas, como a Casa Civil e as Relações Institucionais. O ministro Fernando Haddad conseguiu emplacar suas pautas prioritárias e articular diretamente a aprovação delas.
Neste ano não foi diferente. Na pauta, a prioridade era a regulamentação da reforma tributária, em continuidade ao sucesso da aprovação e promulgação da PEC que alterou o regime de tributação em 2023. Além de seu protagonismo, Haddad contou com três grandes aliados: Bernard Appy, seu secretário dedicado ao assunto, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Progressistas-AL), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Lira foi o primeiro que Haddad procurou para articular. Com grande amizade, o ministro foi pessoalmente à Câmara entregar mais de 500 páginas da primeira parte da regulamentação. Conversou com o alagoano, que prometeu a aprovação até a metade do ano.
Em meio aos impasses com o governo, Arthur Lira ligou seu “trator” e atropelou outros projetos para atender o governo e, de quebra, garantir os compromissos com as emendas parlamentares. Criou um grupo de trabalho e aprovou a regulamentação em julho.
Apenas um projeto, que prevê a criação de um comitê gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), ficou para o segundo semestre. Sua aprovação veio somente em outubro, após as eleições.
No Senado, a regulamentação foi aprovada apenas no fim do ano (leia no último tópico desta reportagem).
Calendário eleitoral interrompe trabalhos
Tanto a Câmara quanto o Senado desfrutaram de generosas “férias” dos trabalhos em Brasília. As eleições municipais fizeram com que deputados e senadores esquecessem o Congresso Nacional e se concentrassem em suas bases.
Enquanto alguns congressistas se lançavam como candidatos, outros tentavam alavancar suas forças pensando nas eleições de 2026.
Nas vésperas do calendário eleitoral, o Palácio do Planalto viu-se contra a parede. A interferência do STF na desoneração da folha de pagamento foi a gota d’água para estremecer a relação entre Lula e o Senado.
Rodrigo Pacheco ficou irritado com a judicialização e enviou recados políticos ao Planalto. Em abril, chegou a cobrar publicamente o presidente pelo veto da medida.
Além de pautas para limitar decisões monocráticas, Pacheco sinalizou a interlocutores que agilizaria a votação de vetos ao Orçamento de 2024, o que poderia impor derrotas ao governo. Para apaziguar a situação, Lula chamou Pacheco ao Planalto e ouviu cobranças incisivas sobre o tema, além do projeto de renegociação das dívidas dos estados.
O presidente saiu satisfeito. O senador Efraim Filho (União-PB) apresentou um projeto para reonerar a folha de pagamento a partir de 2025, enquanto o governo encaminhou um texto para renegociar as dívidas estaduais. Ambos foram aprovados pelo Congresso, sem resistências.
O conservadorismo em pauta
Em meio à tensão sobre o governo e as especulações sobre a sucessão na Câmara dos Deputados, Arthur Lira voltou a ligar seu trator e acenou ao conservadorismo. Com intuito de emplacar seu sucesso com apoio da base e oposição, Lira precisou ceder a pressão do PL e dos bolsonaristas para tentar emplacar ao menos uma pauta ideológica no plenário da Casa.
O PL do aborto foi a bola da vez. De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o texto ganhou protagonismo perto da metade do ano e chegou a ter urgência votada em segundos pelos deputados.
Enquanto a base ficou revoltada com a medida, a oposição passava a se articular para conseguir aprovar o projeto em tempo recorde. Sem sucesso.
O trator de Lira perdeu potência após a repercussão negativa nas redes sociais e sobre os eleitores, que creditaram ao próprio presidente da Câmara a agilidade no projeto. Irritado com as repercussões, Arthur Lira foi ao púlpito do Salão Verde minimizar a crise, mas jogou a bomba no colo dos líderes partidários.
A forte pressão da internet surtiu efeito e o presidente da Câmara não teve outra escolha: engavetou o projeto em sua gaveta trancada a sete chaves.
Mas não foi apenas o aborto em que o conservadorismo tentou se tornar protagonista neste ano. Bolsonaristas ainda pressionaram por um projeto de anistia aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro. De quebra, o texto beneficiaria o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), investigado na trama golpista.
A proposta passou a ganhar muita força, mesmo com a resistência do governo, no segundo semestre deste ano. Um texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) foi costurado, mas um episódio segurou qualquer tentativa de aprovação.
A descoberta de um plano para matar o então presidente eleito, Lula, o vice, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, do STF, inviabilizou o texto. Paralelo a isso, a PF indiciou Bolsonaro na trama golpista, enterrando, de vez, o projeto.
As sucessões
Se o Congresso já pegava fogo por causa das emendas parlamentares, um novo incêndio se formava: a sucessão para o comando das duas Casas. Entre traições e sufocamentos, as eleições de fevereiro, tanto da Câmara quanto do Senado, já estão decididas. Hugo Motta (Republicanos-PB) sucederá Lira, enquanto Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) assumirá a cadeira de Pacheco.
No Senado, a situação foi mais tranquila. Há quem diga que as eleições já estavam decididas há quatro anos, quando Rodrigo Pacheco assumiu seu primeiro mandato no comando do Congresso Nacional.
Alcolumbre presidiu o Senado entre 2019 e 2020, mas não concorreu à reeleição em 2021 devido à proibição imposta pelo regimento interno, que não permite recondução dentro da mesma legislatura. Isso abriu caminho para Pacheco, seu aliado. Lá, estava decidido que o amapaense, com forte articulação na Casa, assumiria a cadeira após a saída do mineiro.
Davi Alcolumbre sempre mostrou força no Congresso. Como presidente da CCJ, conseguiu articular projetos importantes tanto para o governo quanto para a oposição. Ele mesmo se reúne com os senadores para negociar, fazer alterações nos textos e até tratar de emendas. Um perfil à la Arthur Lira no Senado.
Cogitaram-se concorrentes para disputar com ele, como as senadoras Eliziane Gama (PSD-MA) e Soraya Thronicke (Podemos-MS), mas ambas perderam força.
Se no Senado o cenário era previsível, na Câmara o incêndio se alastrou por todas as alas. Até amizades de longa data foram desfeitas (ainda que temporariamente).
Apadrinhado por Eduardo Cunha, Arthur Lira não queria o mesmo destino de seu antecessor, Rodrigo Maia, que tentou emplacar um sucessor, mas se viu derrotado e temporariamente apagado do alto clero político. Para evitar isso, Lira precisava ser estratégico e escolher alguém com viabilidade.
Como dito acima, Lira não queria apenas um sucessor; queria emplacar um nome que tivesse o apoio tanto da base quanto da oposição, ampliando seu poder de barganha e sua influência na Casa. No fim, ele conseguiu.
Inicialmente, tinha Elmar Nascimento (União Brasil-BA) como preferido. Também estavam na disputa Antônio Brito (PSD-BA) e Marcos Pereira (Republicanos-SP).
Elmar já se apresentava como o escolhido de Lira, mesmo enfrentando resistências dos deputados do baixo clero. Ele tinha certeza de que seu melhor amigo o colocaria na cadeira mais alta do Salão Verde.
Porém, o cenário que parecia definido começou a mudar durante as eleições. Elmar perdeu força, enquanto Pereira retirou sua candidatura em prol de Hugo Motta, que se tornou o favorito de Lira.
A “traição”, como Elmar descreveu nos bastidores, revoltou o baiano, que prometeu vingança e afirmou ter “perdido seu melhor amigo”. Ele se aliou a Brito para tentar lançar uma candidatura competitiva contra o paraibano, mas viu suas chances se desfazerem em menos de 48 horas.
No retorno aos trabalhos após as eleições, Motta passou a articular com todos os partidos, com o apoio de Arthur Lira, e conseguiu o aval de pelo menos 12 legendas em uma semana. Já é chamado nos bastidores de “presidente”.
Ainda devem concorrer o deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) e um nome do Novo. No entanto, a derrota de ambos é iminente, e os partidos apenas lançaram candidatos para marcar posição.
No apagar das luzes
Como em toda boa novela, o capítulo final precisa reservar emoções. Com o calendário apertado, Câmara e Senado fizeram um esforço concentrado para aprovar projetos prioritários. E, para complicar ainda mais, surgiu mais uma bomba: o pacote de gastos.
Pressionado pela alta do dólar e pelo aumento excessivo dos gastos públicos, Fernando Haddad teve que voltar ao centro do protagonismo e apresentar um pacote de medidas para reduzir os gastos da União e cumprir a meta fiscal. O projeto, no entanto, desagradou o mercado financeiro e causou desconforto até mesmo entre seus principais aliados.
Para atender às demandas do governo, o Congresso passou quase três semanas em votações intensas de pautas prioritárias. O Senado conseguiu aprovar a regulamentação da reforma tributária na penúltima semana de trabalhos, cumprindo o prazo de votar a medida ainda neste ano.
Já o pacote de gastos ficou por um fio, em meio à disputa pelas emendas parlamentares. O impasse levou Lira a adiar a votação em uma semana, pressionando ainda mais o calendário legislativo. Apenas na última semana de trabalho do Congresso a medida foi aprovada no Salão Verde, forçando o Senado a trabalhar nos dois últimos dias de sessão para finalizar os textos.
As três medidas, incluindo uma PEC, foram aprovadas e sancionadas pelo Palácio do Planalto. Apenas um projeto, que trata da aposentadoria de militares, ficou adiado para 2025.