Novas investigações sobre desembargadores revelam relações suspeitas

Operação da PF no Mato Grosso, escândalo de venda de sentenças no STJ, afastamento de magistrado em Minas Gerais, nepotismo e ganho ilícito com a 'farra em ações de Recuperação Judicial (RJ)' colocam em xeque a estrutura do poder judiciário

Recuperação judicial
O pano de fundo da investigação é a possível lavagem de dinheiro obtida com a venda de sentenças Foto: Freepik

Em nova fase da Operação Sisamnes deflagrada hoje, a Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão tendo como alvo uma assessora do desembargador João Ferreira Filho. O objetivo da ação é identificar, “aparente propósito de dissimular a origem ilícita do dinheiro utilizado para financiar a compra de imóveis residenciais e de veículos”, de acordo com a PF.

O pano de fundo da investigação é a possível lavagem de dinheiro obtida com a venda de sentenças. Em novembro, os desembargadores João Ferreira Filho e Sebastião de Moraes Filho foram afastados do Tribunal de Justiça do Mato Grosso por decisão do ministro do STF, Cristiano Zanin, e desde então estão em prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica. Além disso, foram bloqueados R$ 1,8 milhão dos investigados e o sequestro dos imóveis adquiridos.

Há quinze dias, o desembargador Alexandre Victor de Carvalho, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), afastado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por suspeita de rachadinha, também estava sob investigação por sua atuação no caso da recuperação judicial (RJ) do Grupo 123 Milhas. Na terça-feira, 10, o magistrado foi acusado de tentar colocar o filho, Guilherme Souza Victor de Carvalho, em cargo comissionado na Câmara Municipal de Belo Horizonte (MG), no lugar da mulher, Andreza Campos Victor de Carvalho, que ocuparia uma vaga na Assembleia Legislativa. A troca envolveria o pagamento de rachadinha em benefício da sogra que está passando o cargo adiante.

Há dois meses, o CNJ abriu uma investigação contra Carvalho devido a acusações de “atos irregulares e decisões teratológicas” durante sua atuação como relator da ação envolvendo a 123 Milhas. Uma empresa de administração prejudicada alegou que o desembargador nomeou administradores judiciais de forma irregular, substituindo os indicados pelo juízo de primeiro grau, o que configura violação ao princípio do juiz natural.

A investigação envolve a suspeita de desvio de R$ 23 milhões para pagamento de honorários de peritos e administradores judiciais (AJs) por ele nomeados. O caso é mais um do que vem sendo chamado de “farra da Recuperação Judicial (RJ) e do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ)”.O instrumento, que é legítimo, tem sido amplamente utilizado visando a busca de acordo com empresas a fim de obter acordos milionários, engordando a remuneração dos prestadores de serviços, mediante comissões de 5% no caso de AJs, até 30% para os próprios escritórios.

Campo minado de suspeitas

A recuperação judicial, mecanismo previsto na Lei 11.101/2005 para evitar a falência de empresas em dificuldades financeiras, tem se tornado um terreno fértil para suspeitas de irregularidades e fraudes no Brasil. Processos se arrastam por anos, com prejuízo aos credores, ao Fisco e à própria recuperação das empresas.

Um dos casos que ilustram essa problemática é o da Viação Itapemirim, que teve sua falência decretada em 2022 após um processo de recuperação judicial iniciado em 2016. A empresa acumula dívida de cerca de R$ 2,4 bilhões e a atual arrendatária de sua massa falida, a Suzantur, é alvo de questionamentos da Expresso União, empresa do Grupo Constantino, antigo dono da Itapemirim.

A Expresso União alega que a EXM Partners, administradora judicial da massa falida da Itapemirim, recusou sua proposta de arrendamento das linhas interestaduais da empresa, à qual era sete vezes maior que o valor pago pela Suzantur. A proposta da Expresso União previa o pagamento de R$ 1,5 milhão por mês pela operação das linhas, enquanto a Suzantur paga apenas R$ 200 mil.

Além do caso Itapemirim, outros processos de recuperação judicial se arrastam por anos no Brasil, alimentando suspeitas de fraudes e ilicitudes. Caso da Usina Albertina, a Usina Floralco (pertencente ao Grupo Gam) e a Flórida Paulista Açúcar e Etanol S.A., que teve desdobramentos até no CNJ. Um dos réus questionou o CNJ pela atuação da AJ e a contratação de um escritório de advocacia. Foi até aberto processo administrativo para apurar a conduta dos magistrados que atuaram no caso, mas, em razão de acordo celebrado, as apurações não seguiram. Vale lembrar ainda que a Usina São Fernando e a Oi são exemplos de empresas com processos de recuperação judicial que se estendem por longos períodos.

A Indústria da Recuperação Judicial

A morosidade dos processos e a falta de fiscalização efetiva criam um ambiente propício para a atuação de “uma indústria da recuperação judicial e IDPJ”, que se beneficia da perpetuação dos casos. Juízes, administradores judiciais, escritórios de advocacia e empresas de perícia especializadas se beneficiam financeiramente da demora na resolução dos processos.

Da mesma maneira, o IDPJ vem sendo usado para beneficiar agentes envolvidos em processos de falências. O método se apoia na fragilidade contábil das empresas falimentares, valendo-se de processos sigilosos, quebra do sigilo de terceiros e obtenção de informações seletivas sem a garantia do contraditório, uma vez que não são obrigatoriamente submetidos a perícia ou investigação por solicitação do juiz do caso.

O objetivo é estender os efeitos da falência a esses terceiros, resultando no bloqueio de bens e na ameaça de responsabilização por todo o passivo da falência. O contexto faz com que os acusados acabem cedendo a acordos envolvendo o pagamento de cifras milionárias aos AJs.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem investigado denúncias de abuso da desconsideração de personalidade jurídica, em prejuízo de empresas processadas e levadas a acordo judiciais, como se deu no caso da falência do Grupo GAM.

Outro caso recente relacionado ao IDPJ envolve a JBS. A empresa dos irmãos Joesley e Wesley Batista obteve vitória parcial no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) para não responder à Corte Americana do Distrito Sul da Flórida (EUA) no âmbito do processo da recuperação judicial da Tinto Holding, pertencente ao antigo Grupo Bertin, hoje renomeado como Grupo Heber.

O desembargador Rui Cascaldi, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, acatou agravo de instrumento da JBS para suspender a tentativa da administradora judicial da massa falida da Tinto Holding, a AJ Ruiz Consultoria Empresarial S.A., de arrolar empresa dos Batista como parte responsável por prejuízos que teriam levado a companhia da família Bertin a acumular dívidas de cerca de R$ 5,8 bilhões sendo quase R$ 3 bilhões em pendências tributárias.

O uso indiscriminado do IDPJ desperta a atenção de juristas e deve ser tema de análise mais apurada do CNJ, que vem recebendo denúncias dessa prática. O projeto de lei 3/2024, em tramitação no Congresso Nacional, também busca reduzir o tempo dos processos de recuperação judicial e falência. A proposta, elaborada pelo Ministério da Fazenda, prevê medidas para modernizar o processo e eliminar gargalos, com o objetivo de reduzir os prazos pela metade.

Enquanto a legislação não é aprimorada, a indústria da recuperação judicial segue operando em um limbo jurídico, com casos emblemáticos como o da Itapemirim evidenciando a necessidade de maior rigor e fiscalização por parte do Judiciário. A falta de transparência e a lentidão dos processos contribuem para a desconfiança do mercado em relação a esse importante instrumento de recuperação de empresas em crise.

Modus Operandi das Recuperações
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