Pelo menos dois políticos que aparecem no levantamento da Agência Pública como descendentes de famílias que teriam possuído escravizados na época do Império brasileiro foram, recentemente, investigados por trabalho análogo à escravidão. Outro teve parentes próximos denunciados pelo mesmo motivo.

Os senadores Jader Barbalho (MDB-PA) e Jayme Campos (União Brasil-MT) e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), são descendentes de famílias poderosas e com longa trajetória política em seus estados, cuja influência se perpetua até hoje.

Tanto Barbalho como Campos são donos de fazendas onde fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) encontraram trabalhadores em situação análoga à escravidão. O mesmo ocorreu nas propriedades de dois parentes próximos de Caiado. Mas nada disso trouxe consequências graves para a carreira política de nenhum deles.

Um dos casos foi arquivado e os outros três resultaram em multas. Mas os valores das indenizações foram relativamente pequenos se comparados com o patrimônio das famílias. As famílias Barbalho, Caiado e Campos estão no poder há muitas décadas, assim como outros clãs políticos já revelados pela Pública. Parte do seu poderio, que persiste até hoje, teria sido obtido por meio do trabalho de pessoas escravizadas.

A reportagem procurou os políticos citados para esclarecer os achados sobre sua árvore genealógica e a relação do antepassado com a escravidão, assim como fizemos com todas as autoridades citadas no Projeto Escravizadores. Também pedimos respostas sobre os processos de trabalho análogo ao escravo, mas não obtivemos respostas até a publicação.

Segundo o Código Penal brasileiro, o trabalho análogo à escravidão se caracteriza quando uma pessoa é submetida a uma ou mais das seguintes situações: jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e trabalho forçado por dívida, com ou sem restrição da locomoção. Não se usa mais o termo “escravidão” porque ele foi abolido na Constituição de 1988, que garante uma série de direitos individuais e sociais.

Casas, ouro, prata e escravizados

Em 2008, um relatório de fiscalização do Ministério Público do Trabalho (MPT) encontrou 16 trabalhadores em situação análoga à escravidão na Agropecuária Rio Branco, em Aurora do Pará. As pessoas haviam sido contratadas para construir cercas na propriedade, mas eram obrigadas a dormir num alojamento precário feito de taipa e madeira, com um buraco no chão no lugar de banheiro e sem lugar para tomar banho. Nenhuma tinha registro trabalhista.

Apenas quatro anos depois, em 2012, uma denúncia sobre o caso foi apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o dono da fazenda: o senador Jader Barbalho. A defesa de Barbalho apontou que ele não poderia ser responsabilizado porque as contratações teriam sido feitas por um terceiro, sem a ciência do senador. O ex-ministro do Supremo Marco Aurélio, relator do caso, achou o argumento convincente.

Para Marco Aurélio, o caso é “comum”, uma “realidade que não pode ser desconhecida considerando o interior desse imenso Brasil”, segundo escreveu em seu voto. Ele opinou pelo arquivamento da ação com o argumento de que, “em virtude da ocorrência de fiscalização, o quadro veio a ser corrigido”. Os outros ministros o acompanharam.

O caso foi arquivado em junho de 2014 – e não virou notícia na grande imprensa. No fim daquele mesmo mês, o Congresso promulgaria a PEC do Trabalho Escravo, que prevê expropriação de terras de imóveis onde forem flagrados trabalhadores em situação análoga à escravidão. Um processo foi aberto no MPT na época, mas corre em sigilo.

Líder do clã Barbalho, um dos mais poderosos do país, Jader Barbalho é uma daquelas figuras políticas de que todo brasileiro pelo menos já ouviu falar. Apesar de ter sido acusado em vários casos de corrupção, ele ocupa posições de destaque na política há quase 60 anos e conseguiu colocar familiares nos principais postos do Pará e do governo federal.

O filho, Helder, é governador do Pará. Outro filho, Jader Filho, é ministro das Cidades. A ex-mulher, Elcione, está no sexto mandato como deputada federal. No episódio mais recente da trama familiar, seu sobrinho, Igor Normando, foi eleito prefeito de Belém no mês passado. Além disso, um levantamento do Estadão de 2023 mostra que pelo menos 20 outros membros da família foram colocados em postos no Tribunal de Justiça, ministérios públicos e tribunais de contas.

O poderio da família Barbalho remonta a mais de 150 anos e teve início no estado do Piauí. “No Piauí oitocentista havia três qualidades desejáveis para que um homem se tornasse um chefe político influente: fortuna, honorabilidade e o prestígio que lhe conferia o título de oficial da Guarda Nacional”, escreveu o historiador Elton Larry Valério em um estudo sobre o impacto da Guerra do Paraguai no estado.

Tataravô de Helder Barbalho, João Martiniano Fontenelle reunia todas as características: tinha dinheiro, um sobrenome influente, foi tenente-coronel e um dos líderes do Partido Conservador – o mais influente da época. Com tudo isso, foi três vezes presidente da Assembleia Legislativa do Piauí, entre 1862 e 1877.

Fontenelle tinha um vasto patrimônio: 30 contos de réis, sete casas, um engenho, 23 joias de ouro e bastante prata, de acordo com levantamento do historiador Vicente Miranda no livro Três séculos de caminhada, sobre a genealogia de colonizadores do Piauí e do Ceará. Ele teria também cinco escravizados.

Fontenelle foi um dos principais colonizadores de Piracuruca, no norte do Piauí. E ficou marcado nas páginas de jornal da época por matar a esposa, Joaquina, e depois se matar, supostamente após uma crise de ciúmes, em 1878. Ele atirou na mulher e tentou atirar em si mesmo, mas falhou, então cravou um punhal na garganta. O crime aconteceu numa rua que, por causa disso, ficou conhecida como Goela.

Os dois filhos do casal ainda eram crianças, mas tinham direito a parte dos bens. Maria do Carmo, de 10 anos, ficou com casas, terras, joias, gado, uma escrava chamada Joana e o filho dela, Antonio, de seis anos – apenas quatro anos mais novo que ela. Seu irmão, João Martiniano Fontenelle Filho, trisavô de Jader Barbalho, recebeu uma herança “no mesmo valor”.

Barbalho se autodeclara pardo. Em 2020, ele deu uma declaração no Dia da Consciência Negra sobre o líder quilombola Zumbi dos Palmares: “Um grande líder negro que lutou pela liberdade, contra a escravidão. É um dia de reflexão contra a discriminação racial e a desigualdade social. Uma luta de todos os dias”.

Não há registro de declarações públicas do senador sobre a acusação de trabalho escravo em sua fazenda há menos de 20 anos. Muito menos sobre os seus descendentes que teriam sido proprietários de escravizados.

Antepassado abolicionista, descendentes nem tanto

A família Caiado “está há mais de 100 anos ocupando algum mandato estadual ou federal”, segundo apurou a pesquisadora Mirian Bianca Amaral Bueno, na dissertação de mestrado Memória, família e poder: história de uma permanência política – os Caiado em Goiás.”Os Caiado permaneceram na cena política desde o final do Império até os dias de hoje”, ela constatou. O texto é de 1996, mas permanece atual.

Atualmente, Ronaldo Caiado é governador de Goiás e um dos herdeiros do bolsonarismo. Ele e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), foram os únicos políticos brasileiros recebidos pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Ele vem de uma longa linhagem de políticos que ocuparam cargos em Goiás e em Brasília.

Um dos primeiros expoentes da família a ter destaque político foi o tenente-coronel Antonio José Caiado, que fundou a diretoria do Clube Liberal, em 1881. O que diferenciava liberais e conservadores, na época, era a posição abolicionista dos primeiros.

O antepassado foi um dos fundadores do Clube Libertador de Goiáz, “alforriando 150 escravos em sua instalação”, de acordo com o mesmo estudo, que cita o livro História de uma oligarquia: os Bulhões, de Maria Augusta de Sant’Anna Moraes. Ele próprio alforriou todos os escravizados de seu latifúndio em 1887.

Mas, para a pesquisadora Amaral Bueno, as intenções de Antônio José Caiado podem não ter sido tão puras assim. “Ele tornou-se abolicionista por volta de 1880. A disposição de solucionar pessoalmente a questão da escravidão, articulando outros latifundiários para que assim procedessem, previa mais nos benefícios materiais e políticos do que fins humanitários. Isso porque a total falta de alternativas de trabalho e sobrevivência de negros forros impunha-lhes a permanência na fazenda de origem, talvez em condições ainda piores do que as anteriores, e com a desobrigação do senhor frente à sua manutenção”, escreveu.

Em outro trecho sobre o passado da família, a pesquisadora cita que Diva Caiado, neta de Antonio José Caiado, disse em entrevista “que se lembra do dia da alforria e que os escravos cantavam e dançavam de alegria e beijavam os pés do benfeitor”.

Essa também é a memória repassada à dona Maria Fleury: “Muito antes de 1888, meu bisavô (Antonio José Caiado) aboliu a escravidão nas fazendas dele: Europa e Santa Tereza. Diversos correligionários ficaram contrariados. Irmandado com o filho Torquato, eles conseguiram que diversos amigos fizessem o mesmo: ‘De hoje em diante, vocês estão livres’. Ninguém quis sair da fazenda. Ninguém saiu. Quer dizer, ele era bom senhor, todos pediram para ficar recebendo salários”.

As memórias da família sobre Antonio José Caiado são parecidas no sentido de que ele teria sido um benfeitor para os escravizados. “Ele era um espírito tão humanitário que fez a senzala a 10 ou 15 metros da casa-grande. Para os casais, era quarto, cozinha, sala – três cômodos. Eles podiam ter cozinha, fogão. Ele dava carne, mantimentos, tudo. Para os solteiros eram dois cômodos, sem cozinha. Era tudo separado. Não tinha maltrato. Ele era muito humano com os escravos”, disse a descendente à pesquisadora.

“Existem ainda citações que dão conta da inexistência de troncos de tortura, mesmo considerando o plantel da família, estimado em mais ou menos 100 escravos, sendo que em torno de 40 trabalhavam no engenho de Santa Tereza”, escreve Bueno. Para a pesquisadora, porém, a memória coletiva da família que os coloca em uma posição de “mocinhos” que alforriaram escravizados serve para os “credenciar a permanecer como proprietários de terra e administradores das relações de trabalho”.

“Se fôssemos considerar a memória construída pela família como sinônimo das relações sociais na colônia e no Império, teríamos que reescrever toda a história do país, bem como reconceituar escravidão”, ela afirma.

Os Caiado, de fato, continuaram como uma das grandes proprietárias de terras em Goiás até os dias atuais. É nesse contexto que dois parentes de Ronaldo Caiado foram flagrados com trabalho análogo à escravidão em suas fazendas nos últimos anos.

Em 2010, 26 trabalhadores foram resgatados em uma fazenda de propriedade de Emival Ramos Caiado, primo do governador de Goiás. Eles estavam expostos a uma série de riscos, não tinham acesso a banheiro, água potável ou energia elétrica, segundo o relatório de fiscalização. Os trabalhadores ainda tinham que pagar por comida e pelas ferramentas de trabalho, gerando a chamada servidão por dívidas.

Com uma liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ele ficou fora da lista entre 2015 e 2021. Nesse período, segundo a Repórter Brasil, ele conseguiu vender carne para grandes empresas como a JBS e a Masterboi. Em 2022, a Justiça mandou o nome dele voltar para a lista. Como multa pelo dano moral coletivo causado, o dono da fazenda entregou uma ambulância e equipamentos odontológicos à prefeitura municipal de Natividade, em Tocantins.

Além dele, Antonio Ramos Caiado Jr., tio do governador, entrou na lista suja do trabalho escravo em 2014. Fiscais do MTE encontraram quatro trabalhadores submetidos a condições degradantes e a jornadas exaustivas na produção de carvão em sua fazenda em Nova Crixás, cidade a 400 km de Goiânia, segundo o relatório de fiscalização.

Os trabalhadores que foram resgatados afirmaram, na época, que eram obrigados a trabalhar até 19 horas seguidas, das 2h às 21h. Eles produziam carvão vegetal sem equipamentos de proteção individual, usando chinelos e bermudas e em contato direto com a fumaça tóxica. O alojamento em que eles viviam também era precário.

Na época, Caiado Jr. negou ter responsabilidade sobre as condições dos carvoeiros. Ele alegou que a área havia sido cedida em regime de comodato a um terceiro. O MPT firmou um TAC com um dos donos da fazenda, mas o parente de Caiado se negou a assinar também. Por não ter feito o acordo, ele foi processado e foi condenado inicialmente a pagar uma multa de R$ 70 mil por danos morais coletivos.

Fortuna, fazendas e gado

No final de 2022, Jayme Campos reclamou que o salário de um senador – que na época era de R$ 23,4 mil líquidos – era “muito pouco” para andar bem-vestido, pagar plano de saúde e alimentação. Ele estava justificando o aumento de salários de congressistas que havia acabado de ser aprovado – e que vai chegar a R$ 46,3 mil em 2026.

Na última eleição vencida por Campos, em 2018, o patrimônio declarado por ele o colocava na sexta posição de político mais rico do Congresso, com uma fortuna declarada de R$ 35 milhões e mais de 20 fazendas, de acordo com mapeamento do De Olho nos Ruralistas.

Campos é um dos representantes de uma das famílias mais poderosas e longevas na política mato-grossense. Ele e o irmão, Júlio Campos, foram governadores e prefeitos de Várzea Grande, a segunda maior cidade do estado, além de ocuparem outros cargos no alto escalão local ou de Brasília. Hoje, Jayme é senador e Júlio, deputado estadual.

O pai deles, Júlio Domingos de Campos, conhecido como seu Fiote, já foi classificado como o “político mais habilidoso do Brasil” por Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo. Maluf confiava tanto no poder político da família que convenceu Fernando Collor a chamar Júlio para ser seu vice na corrida presidencial de 1989. Júlio negou, e a vaga acabou indo para Itamar Franco. Naquele ano, Júlio foi eleito senador e Jayme, governador.

Pelo menos um dos antepassados da família Campos teria possuído escravizados, segundo o levantamento da Pública. Antônio José Pinto de Figueiredo era mestre de campo (patente militar da época colonial hoje correspondente a coronel) em Cuiabá. O livro Genealogia matogrossense, de José Barnabé de Mesquita, diz que no seu inventário, de 1795, “constava haver deixado uma grande fazenda, composta de 83 escravos, ouro lavrado, prata, móveis”, entre outros.

Mais de 200 anos depois, em 2008, 15 trabalhadores alegaram que foram submetidos a trabalho degradante na fazenda Santa Amália, em Alta Floresta (MT), uma das propriedades de Jayme Campos. O senador assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT na época.

O termo previa que fossem garantidos aos trabalhadores da fazenda registro na carteira de trabalho, transporte e alojamento adequados, equipamentos de proteção individual gratuitos, fornecimento de água potável, repouso semanal remunerado e pagamento integral do salário até o quinto dia útil do mês subsequente.

A situação foi atípica para os padrões da fiscalização do trabalho porque não houve inspeção na fazenda do senador – os trabalhadores procuraram espontaneamente o MPT para fazer a denúncia após terem sido mandados embora. Na época, eles alegaram que foram demitidos logo após fiscais terem flagrado trabalho em condições degradantes em uma fazenda do lado da do senador.

Campos negou irregularidades, disse que sofria perseguição política e que aceitou assinar o TAC porque “não tinha nada a temer”. Nós procuramos o político, que não respondeu.

O senador descumpriu as medidas do TAC e, em 2017, teve que assinar um novo termo. Como penalidade, se comprometeu a destinar para a delegacia da Polícia Federal de Sinop, no Mato Grosso, 39 coldres e cintos táticos, no valor total de R$ 40,8 mil.

Também em 2008, Campos já havia sido multado em mais de R$ 6 milhões pelo Ibama por ter desmatado mais de 1,5 mil hectares em uma área de proteção ambiental na mesma fazenda Santa Amália. Ele deu a mesma resposta: negou que tivesse desmatado e atribuiu perseguição política ao órgão de fiscalização.