Um dos grandes nomes da música popular brasileira há décadas, Paula Lima vem arrastando os fãs por onde passa com um projeto em homenagem a Rita Lee (1947-2023), uma de suas inspirações na carreira.

Aos 54 anos de idade, a cantora se apresenta com o “Soul Lee”, espetáculo em que revisita a cantora veterana em versões pessoais, cheias de ritmos black’n’ roll, como ela mesma apelidou, por várias cidades.  Na próxima segunda-feira, 28, inclusive, a artista estará no palco do Sesc Carmo, em São Paulo, às 19h.

Em entrevista ao site IstoÉ Gente, Paula fala sobre a cumplicidade que tem com Rita até hoje, após a sua morte – um caso de almas, segundo ela -, e sobre as adversidades que apareceram enquanto trilhava seu caminho na música.

Durante bate-papo, que mesclou descontração e reflexões profundas, a cantora revisitou o passado e detalhou episódios de racismo sofridos na infância e adolescência. Apesar disso, ela admitiu ter consciência de que, em vista do que poderia ter sofrido, dos males o menor – pois cresceu em uma família estruturada, que tinha condições de lhe dar minimamente alguns privilégios.

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“A gente entra na questão da meritocracia. Muita gente acredita que eu, talvez, olhasse para alguém e dissesse que se eu consegui, a pessoa também deveria conseguir. Não, não funciona assim. Eu fui exceção dentro de um universo negro, fui a quinta com ensino superior na minha família e a segunda da geração”, declara.

“Eu tive um avô que pensava em educação, um tio que foi o nosso guia e abriu muitos caminhos, meu pai era metalúrgico, minha mãe era professora e ocupava qualquer lugar, ela sabia que todo lugar era dela. Tudo isso fez com que eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje, e que eu tivesse os caminhos que me foram desenhados e abertos”, completa.

Paula Lima detalha episódio de racismo, mas admite privilégios: 'Fui exceção'
Paula Lima fala sobre projetos musicais e empoderamento feminino (Crédito:Divulgação)

A cantora recorda que, apesar de ter uma boa base familiar, seus entes queridos não a blindaram de sofrer discriminação. Em relato, a artista conta que estudou em escolas particulares, era a única aluna negra em 800 crianças e adolescentes, e sofreu racismo ao nunca ser escolhida para formar par nas festas juninas do colégio.

“Quando estava na segunda série e tinha festas juninas… ah, a festa junina era sempre um drama, vi o Thiaguinho [cantor] falando sobre a festa junina, de como era difícil. Eu era muito alta na época e fiquei com o menino mais bonito da turma. E me lembro que ele não queria me dar a mão, porque dizia que ia pegar uma doença. E depois ficava me xingando de ‘vaca preta'”, inicia Paula, que contou com a ajuda da professora para resolver a situação.

“Eu disse à minha mãe que ia contar para a tia Ovécia, que era minha professora maravilhosa. Contei e ela ficou tão indignada, tão revoltada, com tanta raiva, que puxou ele no corredor e falou, aos berros: ‘O que você falou para a minha aluna Paula Cristina? Como você pode tratar uma pessoa assim? Aonde ela é diferente de você?’ Ele, coitado, imagina, uma criança, ficou super vermelho, sem saber o que fazer. Conclusão: nunca mais tive problemas, ele passou a me dar a mão, nunca mais me chamou de ‘vaca preta’ e ainda queria ser meu amigo”, detalha a cantora, referindo-se à discriminação estrutural, que passa dos adultos para as crianças.

“Eu não tenho um trauma, mas lembro que foi uma coisa desagradável. E nas festinhas de escola eu era querida, mas nenhum menino dançava comigo. Tinham aqueles que eram apaixonados, mas não podiam ser”.

Ao ser questionada sobre os comentários que recebia por estar em uma posição de privilégio, em meio aos brancos, apesar de não acreditar no conceito de meritocracia, Paula Lima ressalta:

“Isso é interessante de você apontar, porque eu realmente estudei em uma escola particular em que era a única aluna negra. Mas a minha mãe, muito empoderada, muito ciente e livre, reforçava muito o ‘você pode!’. Então, eu já chegava com um manto do empoderamento e um manto do ‘ninguém vai passar por cima de mim'”.

“E eu era a melhor aluna da escola. Então, isso me protegia de várias maneiras com diretoria, com professores. E eu era uma pessoa legal, a minha família tinha um status social e uma condição financeira tão boa, ou às vezes até um pouco melhor do que muitos alunos que estavam ali. Então, eu não passava nenhuma necessidade. Isso me protegeu”, argumenta.

Descontraída, a cantora diz que sempre se enxergou como uma “jovem idosa”, pois aos 6 anos de idade já tinha consciência da sua realidade como pessoa negra. Isso fez com que o amadurecimento chegasse mais cedo e ela percebesse a importância de questionar a discriminação racial e explicar a história da escravidão para quem veio depois dela.

“[Com 6 anos] Eu já sabia que havia um defeito de cor para alguns olhares, eu já sabia que existia o racismo, que algumas pessoas achavam que pretos não deveriam ocupar alguns lugares. Eu fui entendendo no decorrer da minha vida a linha de partida e a linha de chegada”, diz.

“Mas é muito difícil correr atrás de 400 anos [de escravidão]. Você pode correr atrás de alguns anos, mas correr atrás de 400? Correr atrás de pessoas que eram livres, podiam estudar, ler, ter uma terra, uma casa, uma estrutura familiar, que não eram separadas da sua família, que não eram chicoteadas, violentadas e privadas de liberdade, é difícil”, ressalta.

“Essas pessoas estão na frente de quem viveu e vive tudo isso que eu disse. Eu tento explicar para as pessoas que a questão da meritocracia não existe, porque não é uma questão de mérito, é uma questão do que foi apresentado para você. E essa linha de partida, para ela ser justa, todos teriam que partir do mesmo lugar, e não é isso que acontece”, lamenta.

Paula Lima detalha episódio de racismo, mas admite privilégios: 'Fui exceção'
Paula Lima fala sobre projetos musicais e empoderamento feminino (Crédito:Divulgação)

Rita Lee

Paula Lima só tem elogios a Rita Lee. Segundo ela, a relação entre as duas chega a ser transcendental. “A Rita parece um talismã para mim, uma pedra preciosa, que me traz muita sorte”, enaltece ela, que acompanhava a carreira da veterana desde quando era criança.

“A Rita Lee faz parte da minha vida desde que eu me conheço por gente. Lembro que quando era pequena já via aquela mulher vibrante, colorida, de cabelo vermelho, com aquele ar de liberdade. Aquilo era como um imã para mim”, recorda.

“E, de repente, quando eu me vi já cantora, tive a sorte de cantar com ela no Parque do Ibirapuera. ela e Zélia Duncan. E ela já naquele patamar de popstar, grande estrela, se mostrou uma pessoa muito humana, muito generosa, muito comum, e me deu vários conselhos em relação à vida. Foi muito marcante para mim”, relembra ela, destacando a ligação com Rita a partir daquele momento mudou.

“A partir daí, eu fiquei ainda mais com ela presente na alma, uma coisa de vibração mesmo. Em 2019, eu resolvi homenagear uma grande mulher e a escolhida foi ela, porque ela sempre foi uma mulher à frente do tempo, ativista, politizada, muito feminista, antes de a gente falar sobre tudo isso, empoderada, com um discurso feminino muito original”, encerra.

Agenda de shows:

Data: 28/10 (segunda-feira)
Local: Sesc Carmo
Endereço: R. do Carmo, 147 – Sé, São Paulo – SP
Horário: 19h
Ingressos: https://www.sescsp.org.br/programacao/paula-lima-15/

Data: 02/11 (sábado)
Local: Festival SP Gastronomia
Horário: 19h
Ingressos: https://ingresse.com/sp-gastronomia-2024/