A pesquisa sobre a preferência do eleitorado latino nos EUA, divulgada pelo jornal The New York Times no último domingo, 13, indicou um crescimento significativo de Donald Trump, do Partido Republicano, em relação a Kamala Harris, que representa os democratas.

Historicamente, a inclinação dos eleitores latinos costuma favorecer o Partido Democrata, que comanda o país atualmente. Porém, as especulações das eleições presidenciais de 2024 apontam um apoio de 37% dos votantes hispânicos a Trump, contra 56% de Kamala. A última vez que um candidato democrata esteve abaixo dos 60% na preferência desse eleitorado foi em 2004, quando John Kerry foi derrotado por George Bush.

Donald Trump é conhecido por deferir falas de cunho preconceituoso e defender medidas anti-imigração ao longo de sua carreira política. O ex-presidente promete ações de deportação em massa e a retomada da construção do muro que separa o México dos Estados Unidos, com condutas rígidas na fronteira do país. Apesar disso, 9% dos cidadãos que optaram por Joe Biden em 2020 pretendem votar em Trump neste ano. Biden venceu o adversário republicano na última disputa eleitoral e se tornou presidente, mas deixou a corrida pela reeleição para que Kamala competisse em seu lugar.

O site IstoÉ entrevistou dois especialistas em política internacional para esclarecer os possíveis motivos do crescimento de Trump entre o eleitorado latino. São eles: Uriã Fancelli, Mestre em Relações Internacionais pelas Universidades de Groningen (Países Baixos) e Estrasburgo (França) e Vitelio Brustolin, professor de Relações Internacionais da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisador de Harvard.

Acompanhe a entrevista completa:

IstoÉ: Historicamente, os democratas costumam ficar na frente em relação aos votos dos latinos. Em 2024, porém, o “The New York Times” indicou que Trump cresceu entre os votantes hispânicos. Quais podem ser as razões para isso, já que Kamala Harris é uma mulher racializada e propensa a atrair maior identificação desses eleitores?

Uriã: Eu acho que tem dois fatores. O primeiro deles é que, por mais que a campanha da Kamala Harris tenha trazido para vice o Tim Walz – que tinha o objetivo de falar com a classe trabalhadora – , os democratas ainda não estão conseguindo fazer isso. Ou seja, é algo que os republicanos têm feito muito melhor, falar com aquela pessoa que está insatisfeita com a situação do país. A Kamala Harris, em diversos momentos, apresenta dados econômicos, dizendo que a inflação e o desemprego melhoraram. Só que enquanto as pessoas não sentem no próprio bolso, fica difícil de acreditar que isso está acontecendo. Então os republicanos, como o Donald Trump, conseguem falar e apresentar uma proposta em relação à economia que é um pouco mais convincente. O segundo motivo eu colocaria que é o fato de que a comunidade latina é mais conservadora e mais religiosa, muito ligada ao cristianismo, com uma cultura até pouco mais machista e contra aborto. Então se veem, de fato, mais representados pela campanha do Donald Trump, que engloba tudo isso. O Trump se coloca antiaborto, até tentou amenizar um pouco o discurso, falando que vai deixar isso para os Estados resolverem, mas acredito que os latinos se sentem mais representados pelas bandeiras ideológicas do trumpismo.

Vitelio: Antes da gente falar dessa pesquisa do New York Times, eu proponho que a gente olhe para o cenário de quando Biden e Trump disputavam a eleição. Isso porque teve uma pesquisa do YouGov que pode nos ajudar a entender esse movimento, que não é uma coisa recente. Essa pesquisa do YouGov dava conta de que 43% dos americanos votariam no Biden e 43% votariam no Trump, então já estava equilibrada. Só que quando a gente olha para os brancos, vemos que 38% dos deles diziam que votariam no Biden e 49% no Trump. No caso dos hispânicos, eram 45% para Biden e 39% para Trump. Então já tinha um movimento, embora o Trump pontuasse menos, de boa parte dos votos hispânicos. E ali já se falava de economia também.Essa é uma pergunta que o Trump sempre faz: “A situação econômica de vocês [americanos] é melhor agora ou era melhor em 2019 quando era presidente? Para o americano médio, essa pergunta é facilmente respondida: a situação econômica de 2019 era melhor do que a atual.

Dois terços dos latinos entrevistados na pesquisa do NYT acreditam que Donald Trump não se refere a eles quando fala sobre imigrantes. Por que muitos deles não se reconhecem como parte desse grupo?

Uriã: Isso tem a ver com o fato de que a maioria dessas pessoas são de segunda à terceira geração, então eles já se consideram americanos descendentes de mexicanos, cubanos, venezuelanos, entre outros. A maior parte já está ali há bastante tempo, já nasceu nos Estados Unidos, então consideram que o Trump não está falando deles. Esse é um momento no qual as pessoas sentem que o próprio bolso está ameaçado. Grande parte acaba colocando a segurança, e eu coloco não apenas aquela segurança no quesito da criminalidade, mas também segurança financeira, em primeiro lugar. E só depois que vem essa preocupação com o que o Trump fala, se atinge ou não o grupo do qual elas fazem parte.

Vitelio: A pesquisa indica que outras questões são mais relevantes para o eleitorado negro e hispânico. 40% dos negros e 43% dos hispânicos apoiam a construção de um muro ao longo da fronteira Sul. Essas pessoas, se são imigrantes, especialmente no caso dos hispânicos, lutaram muito para conseguir a cidadania delas. Então existe um movimento muito estudado em sociologia que é o de “chutar escada”. Depois que você se esforça muito para conseguir viver nos Estados Unidos e atingir uma condição de renda e de vida decente, você não não se interessa que os outros alcancem o mesmo status. Então para eles [hispânicos] é relevante a construção de um muro porque muitos, inclusive, têm preocupação com a criminalidade. Por exemplo, a ideia do ”Make America Great Again”, de Trump, interessa esse eleitorado mais do que as questões de política exterior.

Existe também um grande recorte de gênero: os homens hispânicos são muito mais propensos a votar em Trump do que as mulheres. Existe alguma razão especial para essa disparidade?

Uriã: Eu acho que isso tem a ver com o machismo que o Partido Republicano representa hoje pela figura de Donald Trump. Ele, durante muito tempo, fez diversos comentários machistas, alguns horrorosos, como dizer que pegaria nas partes íntimas das mulheres – em áudios que já foram vazados. Então é natural que as mulheres tenham uma rejeição maior ao machismo do Trump, algo que os homens latinos não têm como regra.

Vitelio: Historicamente, mais mulheres votam no Partido Democrata do que no Partido Republicano. Então em 2020, por exemplo, 55% das mulheres votaram no Biden. A campanha atual do Trump e os republicanos assumem que eles tentam falar das ideias e não do candidato. Isso é algo assumido porque ele [Trump] tem um temperamento tempestuoso e isso não agrada o público feminino. Essa personalidade já dissuadiu as mulheres anteriormente, tanto que nas eleições anteriores o Trump recebeu menos votos femininos. A estratégia de campanha, então, é de mostrar para essas mulheres que elas estão em pior situação financeira hoje do que estavam no governo Trump

Uma possível “vontade por mudança” pode motivar a migração dos votos latinos dos democratas para os republicanos, uma vez que o comando da máquina pública americana reside, atualmente, com o Partido Democrata?

Uriã: Eu acredito que a vontade de mudança é um argumento válido, sim, para votação. Muitas pessoas não querem saber se vai mudar para pior ou para melhor – mas sim que, de fato, algo vai mudar. Porém é algo que não dá para “nichar’ apenas entre os votos latinos, eu acho que esse é um argumento que poderia ser direcionado para qualquer grupo, tanto para os americanos como um todo, quanto para a população negra ou descendente de latinos.

Vitelio: Eles realmente querem uma transformação. E aí entra o fator economia. Apenas 20% dos hispânicos e 26% dos negros dizem que as condições econômicas atuais são boas ou excelentes. O Trump é o candidato da oposição do governo atual e a Kamala da continuidade. As pessoas não estão satisfeitas com a condição econômica dos Estados Unidos nesse momento. E tem também a questão da desesperança: apenas 63% dos negros e 46% dos hispânicos dizem que o Partido Democrata cumpriu as promessas de campanha.

*Estagiária sob supervisão