Os efeitos do novo aceno de Lula aos evangélicos

Evangélicos dedicam oração ao presidente Lula (PT) após sanção de lei que cria Dia Nacional da Música Evangélica | Ricardo Stuckert / PR
Evangélicos dedicam oração ao presidente Lula (PT) após sanção de lei que cria Dia Nacional da Música Evangélica Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a lei que institui o Dia Nacional da Música Gospel (9 de junho) em solenidade que teve como principal chamariz a presença do deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ), pastor da Assembleia de Deus de Madureira com um longo histórico de críticas ao PT e às políticas de esquerda.

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Vice-líder da FPE (Frente Parlamentar Evangélica), Otoni dedicou ao petista um discurso elogioso e uma oração, que podem ser vistos no vídeo abaixo. O gesto não foi unânime entre políticos e lideranças pentecostais, mas pode ser encarado como o principal sinal de aproximação em uma atribulada relação entre o governo federal e o segmento religioso, como explica o site IstoÉ neste texto.

Resistências e acenos

No geral, o terceiro mandato do presidente Lula é marcado por desgastes junto às lideranças e ao segmento evangélico da população.

Ainda em janeiro de 2023, nos primeiros dias de gestão, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, revogou uma portaria do governo de Jair Bolsonaro (PL) que endurecia a autorização dos procedimentos legais de aborto — pauta que encontra oposição mesmo dos evangélicos menos conservadores, de acordo com pastores pelo site IstoÉ. Em junho do mesmo ano, o Advogado-Geral da União, Jorge Messias, enviado pelo governo federal à Marcha Para Jesus, ouviu vaias ao subir no palco do evento.

Em janeiro de 2024, a Receita Federal revogou uma determinação — também do governo Bolsonaro — que isentava a remuneração dos pastores, ministros e outras lideranças espirituais da contribuição com a Seguridade Social, o que foi classificado como um “ataque explícito” à população cristã pela FPE.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em julho com evangélicos de São Paulo mostrou que apenas 15% do segmento se identifica ideologicamente com a esquerda e a centro-esquerda e, no primeiro turno das eleições municipais, candidatos apoiados pelo governo federal tiveram, com raras exceções, um desempenho ruim nessa fatia do eleitorado.

Com 214 deputados, a FPE tem apenas 21 integrantes de partidos de esquerda — 15 do PT, quatro do PDT e dois do PSB. Otoni foi responsável por representá-la diante da ausência do líder, Silas Câmara (Republicanos-AM), na solenidade de terça-feira, 15, ao lado de Lula.

Em postagens na rede social X, o presidente destacou que a criação de uma data anual para celebrar a música gospel garante “visibilidade ao importante papel da cultura, da religiosidade e da fé de milhões de brasileiros e brasileiras”. O projeto sancionado, do deputado Raimundo Santos (PSD-PA), cantor gospel e fiel da Assembleia de Deus, tramitou sem resistência no Congresso.

Otoni de Paula (MDB-RJ): deputado federal é elo entre políticos evangélicos e o governo Lula (PT) | Reprodução

Otoni de Paula: deputado federal é elo entre políticos evangélicos e o governo Lula (PT) | Reprodução

O elo raro

Uma liderança evangélica ouvida pelo site IstoÉ sob condição de anonimato associou a vinculação de Otoni ao governo federal ao parlamentar ter conseguido emplacar um indicado seu, Wenderson Monteiro, como superintendente do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) no Rio de Janeiro. A autarquia responde ao Ministério dos Transportes, e Otoni negou que a nomeação tenha tido sua influência — embora tenha admitido ser amigo de Monteiro.

Ainda que tenha um passado de defesa contumaz de Jair Bolsonaro e críticas ao petismo, a aproximação do deputado com o governo federal não pode ser lida exatamente como uma novidade. Na eleição municipal do Rio de Janeiro, contrariou o próprio partido ao apoiar a reeleição de Eduardo Paes (PSD), conquistada no primeiro turno, participando de agendas e posando para fotos ao lado do prefeito. O MDB estava na chapa de Alexandre Ramagem (PL), e o PT na de Paes.

Em entrevista ao site O Fuxico Gospel, Otoni afirmou que cumpriu seu papel “parlamentar e cívico como vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica” ao participar da solenidade e direcionar uma fala a Lula. “Deus usa quem ele quer e como ele quer. Um dia Deus usou o presidente Lula, em 2003, quando ele sancionou a Lei da Liberdade Religiosa”, disse o político e pastor.

Otoni mencionou outras leis sancionadas pelo petista que favoreceram instituições cristãs e disse que “programas sociais criados por ele [Lula] beneficiaram brasileiros das classes C e D, que é onde estão nossos irmãos [evangélicos] em sua grande maioria”. O mesmo Datafolha de julho levantou que 38% dos evangélicos da capital paulista têm renda de até um salário mínimo mensal, e 27% ganham entre um e dois salários

“Apoiar Eduardo Paes é muito diferente de apoiar Lula. O Paes é um político de centro, e o Lula é um político de esquerda, que está muito distante dos nossos princípios. Eu diria que é quase impossível que um dia eu apoie ou peça votos para o Lula ou alguém do PT, porque nós somos antagônicos em pensamentos e princípios”, concluiu o parlamentar.

Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo: 'Lula não garantiu coisa alguma para nós' | Agência Brasil

Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo: ‘Lula não garantiu coisa alguma para nós’ | Agência Brasil

Posição contestada

Mesmo evitando uma associação clara ao presidente, a posição de Otoni não foi compartilhada por outras lideranças evangélicas. O pastor Silas Malafaia, presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, disse ao site IstoÉ que Lula quis “tirar uma casquinha” do projeto de lei sancionado e que o parlamentar não fala em nome do segmento e está “fazendo média” com o petista.

“Não tem aproximação nenhuma com Lula, porque nossa defesa é oposta à do presidente em costumes, pátria e família, temas em que não tem negócio. O presidente enganou os evangélicos na eleição, ao dizer que era contra o aborto, e no primeiro mês de governo sua ministra derrubou portarias do presidente Bolsonaro que dificultavam o aborto. Como pode haver aproximação?”, afirmou.

O cientista político Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico e autor do livro “Entre a religião e o lulismo” (Editora Recriar, 2019), disse ao site IstoÉ que a sanção do Dia Nacional da Música Gospel tem efeitos mais simbólicos do que práticos para os cristãos, mas a presença de Otoni na solenidade mostrou um “primeiro resultado” da articulação do governo federal junto à frente evangélica. “É uma movimentação em direção aos políticos desse campo, ainda que não tão efetivamente ao segmento como um todo“, afirmou.

O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), aliado de Malafaia e colega de comunidade de Otoni na Assembleia de Deus, disse ao site IstoÉ que o parlamentar cumpria seu papel ao participar da solenidade, mas “exagerou” nas falas direcionadas ao presidente. “A postura do deputado Otoni foi exagerada e desconectada da realidade do segmento evangélico. Para quem foi um vice-líder do governo Bolsonaro, as falas dele lá dentro foram muito infelizes”, afirmou o ex-líder da FPE.

“Lula não fez mais do que a obrigação ao sancionar o projeto do deputado Raimundo Santos, este sim merecedor de créditos. Se ele vetasse a lei, nós derrubaríamos o veto, simples assim. O presidente tenta pegar carona na sanção do projeto porque sabe das dificuldades que tem [para conquistar] no voto evangélico, por fazer um governo divorciado dos valores cristãos“, concluiu Sóstenes.

Em junho de 2024, o deputado ganhou projeção nacional como autor de um Projeto de Lei que equiparava a prática do aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. O PL chegou a ter a tramitação aprovada em urgência na Câmara dos Deputados, mas foi repudiado pela sociedade civil e pelo governo, e não avançou.

Na mesma linha, o deputado federal Bibo Nunes (PL-RS), colega de Sóstenes na frente, afirmou que os evangélicos “não querem se aproximar” de Lula, apesar das tentativas do petista. “Não tem como o presidente, pelo que ele defende, estar ao lado dos cristãos, sejam eles evangélicos ou católicos“, disse ao site IstoÉ.

Rubens Otoni (PT-GO), um dos 15 integrantes do partido na FPE, disse ao site IstoÉ que a sanção foi “mais uma demonstração importante da visão respeitosa que o presidente Lula direciona ao segmento religioso”.

É importante lembrar que foi nos governos Lula e Dilma que garantimos as leis de liberdade religiosa, o que foi reconhecido inclusive pelo deputado Otoni. O presidente tinha direito de veto, mas a trajetória dele sempre foi de apoio à comunidade evangélica”, afirmou o petista, para quem há “resistência mútua [dos religiosos e da esquerda] a uma aproximação mais efetiva”.

O deputado Otoni de Paula e o presidente Lula, ao centro, apresentam a sanção de Dia Nacional da Música Gospel: aceno religioso | Ricardo Stuckert/PR

Otoni de Paula e Lula, ao centro, apresentam a sanção de Dia Nacional da Música Gospel: aceno religioso | Ricardo Stuckert/PR

A sanção à Lei de Liberdade Religiosa data de 2003, primeiro ano de Lula no Palácio do Planalto, e garante que instituições de qualquer religião sejam criadas sem que o Estado possa negar seu registro.

Citada por Otoni de Paula e Rubens Otoni, segue mais de duas décadas depois como a principal iniciativa referida pelo próprio presidente como prova de sua relação com os cristãos. Na campanha presidencial de 2022, Lula chegou a afirmar equivocadamente ter “criado” a lei, que foi proposta pelo então deputado federal Paulo Gouvêa (PL-RS) e, assim como a instituição do Dia Nacional da Música Gospel, aprovada com amplitude no Congresso.