É terça-feira (17/09) à tarde. Um homem segura uma sacola enquanto escolhe calmamente frutas em um mercado do Líbano. De repente, uma explosão sacode o local, provocando correria entre os clientes. Um vídeo indica que a explosão parece ter se originado da sacola ou dos bolsos do homem. Por todo o país, cenas similares e simultâneas se repetem, deixando milhares de feridos.
+ Chefe do Hezbollah denuncia ataques israelenses como declaração de guerra
Pouco depois, a origem das explosões começou a ficar mais clara: pagers usados por membros do grupo radical islâmico Hezbollah, que parecem ter sido adulterados com explosivos em uma operação altamente sofisticada.
O Hezbollah culpou seu arqui-inimigo Israel pelas detonações. Os israelenses, que têm um histórico de operações similares, evitaram até o momento confirmar se estão por trás das explosões, mas analistas não têm muitas dúvidas sobre o protagonismo da inteligência de Israel no episódio.
Quando e onde ocorreram as explosões?
Na terça-feira, por volta de 15h30 no horário local (9h30 em Basília), explosões começaram a ser reportadas em Dahieh, um subúrbio de Beirute, e no sul do Líbano, áreas que contam com forte presença do grupo fundamentalista xiita Hezbollah, considerado uma organização terrorista por Israel, EUA e mais duas dúzias de países.
Mais tarde, explosões também foram registradas na Síria, país que mantém laços próximos com o grupo.
As detonações foram descritas como repentinas, emitindo sons similares ao de disparos de arma de fogo. A onda de detonações se estendeu por cerca de uma hora.
No dia seguinte, houve uma segunda onda de explosões, desta vez associadas a walkie-talkies usados por membros do Hezbollah.
Feridos e mortos
Não demorou para a escala da onda de explosões ficar clara. Em dezenas de hospitais libaneses foram registradas cenas de caos conforme feridos iam chegando. Imagens mostraram homens caídos nas ruas com ferimentos nas mãos e na área dos seus bolsos.
Até a quinta-feira (19/09), autoridades libanesas contabilizavam mais de 3 mil feridos de 2.700 pessoas ficaram feridas, sendo que ao menos 287 estavam em estado crítico. Muitas vítimas tinham ferimentos no rosto, mãos e no estômago.
Entre os feridos da primeira leva de explosões, segundo a televisão estatal do Irã, está o embaixador iraniano em Beirute, Mojtaba Amani.
Na Síria, ao menos 14 pessoas ficaram feridas em explosões similares, segundo uma ONG.
Segundo as autoridades libanesas, a escala do episódio superou a da explosão do porto de Beirute em 2020.
Outras 37 pessoas morreram, incluindo uma menina de oito anos, filha de um membro do Hezbollah, afirmou o grupo. A segunda onda de explosões foi a mais letal, fazendo 25 vítimas.
Por que o Hezbollah usa pagers?
Os pagers (ou bipes, como foram chamados no Brasil nos anos 1990), são aparelhos portáteis de comunicação via rádio de alerta sonoro ou de texto. Há muito considerados obsoletos, eles foram largamente substituídos pelos celulares, mas ainda são usados em alguns contextos.
Os modelos mais antigos consistem na receptação de alertas sonoros ou de vibração. Modelos posteriores também recebem curtas mensagens de textos enviadas por uma central e exibidas num pequeno display, enquanto outros também são capazes de responder as mensagens.
Mas, como o sistema de pager não é dependente de redes celulares, ele ainda é usado por médicos e serviços de emergência para emitir e receber alertas, especialmente durante desastres. Já alguns modelos de alerta sonoro ou de vibração ainda são utilizados por restaurantes, por exemplo, para alertar clientes sobre a disponibilidade de mesas.
Mas a natureza simples dos pagers também pode atrair outro tipo de clientela. Modelos que apenas recebem mensagens (mão única) não têm dispositivos de geolocalização como os telefones celulares e, portanto, são difíceis de serem rastreados. Essa característica é especialmente atraente para criminosos e organizações terroristas.
Israel tem um longo histórico de assassinatos direcionados que usaram dados de geolocalização para localizar os alvos.
Em julho, uma reportagem da agência Reuters descreveu como o Hezbollah havia banido o uso de celulares entre seus membros e passado a dar preferência por pagers e mensageiros pessoais. Em fevereiro, o líder do Hezbollah, Sayyed Hassan Nasrallah, chegou a afirmar em comunicado que os celulares eram mais perigosos que espiões e pediu para que os membros do grupo destruíssem seus aparelhos.
Como os pagers explodiram?
Em entrevistas, analistas militares demonstraram espanto com a escala, engenhosidade e audácia da operação que resultou na explosão dos pagers e walkie-talkies.
A forma como os aparelhos foram detonados ainda é alvo de especulação, mas alguns analistas apontam que o mais provável que é os explosivos tenham sido plantados nos pagers em algum ponto da cadeia de produção.
Essa é também a acusação que o Líbano fez em carta enviada ao Conselho de Segurança da ONU. O país afirma que os dispositivos foram carregados com explosivos antes de chegarem em território libanês, e que teriam sido detonados por mensagens eletrônicas enviadas aos aparelhos.
Beirut acusa Tel Aviv de estar por trás da ação. Israel não comentou o episódio.
O ministro israelense da Defesa, Yoav Gallant, elogiou em um discurso as “grandes conquistas” do Mossad, o serviço secreto do país, no momento em que as explosões no Líbano chegavam ao noticiário, mas não atribuiu explicitamente as ações a Israel.
De onde os pagers saíram?
O modelo dos aparelhos usados pelo Hezbollah foi patenteado por uma empresa de Taiwan, mas esta afirma que os aparelhos foram produzidos sob licença por uma companhia sediada na Hungria chamada BAC Consulting. Um jornalista da DW que foi ao endereço da BAC e se deparou com uma zona residencial, o que sugere que se trata de uma empresa de fachada.
Já o governo húngaro declarou, através de seu porta-voz, que a BAC é apenas uma empresa intermediária, sem produção ou base operacional na Hungria, e que os pagers nunca estiveram no país.
Segundo o veículo de mídia húngaro Telex, a importação dos pagers teria na realidade sido feita por uma terceira empresa, a Norta Global, uma empresa criada em 2022 e com sede em Sófia, na Bulgária.
O governo búlgaro disse não ter registros da entrada dos pagers no país, e que investigavam o envolvimento da Norta Global no caso.
A DW também esteve no escritório da Norta Global e tentou contato com a empresa, sem sucesso. O endereço registrado, usado por outras 200 firmas, sugere que ela também é de fachada.
À agência AP, um membro do Hezbollah afirmou que os aparelhos eram de uma marca que ainda não havia sido usada anteriormente pelo grupo. Cerca de 3 mil dispositivos foram adquiridos a partir de fevereiro, quando Nasrallah ordenou o fim do uso de celulares, segundo pessoas informadas sobre a operação ouvidas pelo jornal The New York Times (NYT).
Uma introdução de explosivos nos pagers teria que ter envolvido uma operação ampla e sofisticada. Um especialista militar disse à rede BBC que é provável que os aparelhos tenham sido desviados em algum momento durante a fabricação para que fossem introduzidos de 10 a 20 gramas de explosivo no seu interior e um mecanismo de detonação remota. Membros do Hezbollah apontaram que os aparelhos funcionaram normalmente nos últimos meses.
Já a detonação dos explosivos teria sido feita com o envio de uma mensagem que continha um código específico. Segundo o NYT, os aparelhos emitiram sinais sonoros repetidos antes das explosões. Não se sabe ao certo quantos pagers foram detonados, mas a escala do número de feridos sugere que as detonações atingiram no mínimo centenas e, possivelmente, milhares de aparelhos simultaneamente.
Walkie-talkies que explodiram deixaram de ser produzidos há 10 anos
A empresa japonesa Icom afirmou que os walkie-talkies que explodiram na quarta-feira (18/09) no Líbano, um dia depois da detonação dos pagers, já não é mais fabricado há dez anos.
“O IC-V82 é um rádio portátil que foi produzido e exportado, incluindo para o Oriente Médio, de 2004 até outubro de 2014. Deixou de ser produzido há dez anos e, desde então, não foi despachado de nossa empresa”, disse.
“A produção das baterias necessárias para operar a unidade principal também foi interrompida”, continuou a empresa, acrescentando que elas não tinham selo holográfico para distinguir produtos falsificados, e que por isso não era possível confirmar se saíram da Icom.
A companhia alega que todos os walkie-talkies são produzidos no Japão, e que o programa de exportação é baseado em regras rígidas de segurança e comércio.
O papel de Israel
Israel ainda não emitiu nenhuma confirmação oficial sobre o envolvimento do país nas explosões, mas, segundo a rede CNN e o NYT, membros do governo dos EUA confirmaram, sob anonimato, que se tratou de uma operação conjunta planejada e executada pelo Mossad, a agência de inteligência externa de Israel, e as Forças de Defesa de Israel (FDI).
Israel tem um longo histórico de assassinatos direcionados com o uso de aparelhos de comunicação.
Em 1996, num caso que ficou famoso, agentes israelenses assassinaram Yahya Ayyash, um membro do grupo radical islâmico Hamas apelidado de “o engenheiro”, que havia sido responsável por aperfeiçoar explosivos usados por homens-bomba. Ayyash morreu numa explosão quando atendeu a uma chamada no seu aparelho celular. No interior do aparelho, os israelenses haviam plantado 15 gramas de explosivos.
A resposta do Hezbollah, do Líbano e do Irã
Nos últimos 11 meses, em apoio ao grupo palestino Hamas, o Hezbollah vem travando com Israel um conflito ao longo da fronteira do Líbano, que envolve escaramuças a soldados e lançamento de foguetes e drones. Em resposta, Israel lançou diversos ataques aéreos contra bases do grupo no Líbano e na Síria.
Na terça-feira, após a detonação dos pagers, o Hezbollah afirmou que “irá continuar” as operações em apoio ao Hamas. O grupo ainda afirmou que Israel é “inteiramente responsável” pelo que chamou de “agressão criminosa” e que o país pode esperar uma “justa punição”.
Já seus aliados do Hamas condenaram o que chamaram de “agressão terrorista sionista”.
O Ministério do Exterior do Líbano também atribuiu as explosões a um “ciberataque israelense e que pretende apresentar uma queixa ao Conselho de Segurança da ONU.
Já o regime fundamentalista do Irã, aliado do Hezbollah e do Hamas, acusou Israel de “assassinato em massa”. “(O Irã) condena veementemente o ato terrorista do regime sionista (Israel) no Líbano, que tem como alvo cidadãos libaneses, como um assassinato em massa”, disse o Ministério do Exterior iraniano.
Efeitos
Um membro do Hezbollah admitiu que o episódio foi a “maior falha de segurança” que o grupo sofreu no último ano.
Amos Yadlin, ex-chefe da inteligência militar israelense, disse que o ataque demonstrou “capacidades de penetração, tecnologia e inteligência muito impressionantes”. Ele especulou na rede X que Israel poderia estar enviando um aviso a Nasrallah, o chefe do Hezbollah.
“Parece que o objetivo era passar uma mensagem para reforçar o dilema de Nasrallah: quanto ele está disposto a pagar para continuar atacando Israel e apoiando [o líder do Hamas, Yahya] Sinwar? ” escreveu Yadlin. “A organização, que se orgulha do sigilo e de um alto nível de segurança, se viu penetrada e exposta.”
O analista da rede CNN John Miller afirmou que a mensagem de Israel ao Hezbollah foi clara: “Podemos alcançar vocês em qualquer lugar, a qualquer hora, no dia e no momento que quisermos e podemos fazer isso apertando um botão”.
Outros analistas, no entanto, apesar de reconhecerem a engenhosidade da operação, mostraram mais ceticismo, apontando que seus efeitos estratégicos são questionáveis, e que as explosões não devem mudar o curso adotado pelo Hezbollah.
“As explosões de pagers humilharam o Hezbollah, mas não ganharão nenhuma guerra para Israel”, diz o título de uma análise publicada pelo jornal israelense Haaretz.
O mesmo jornal ainda apontou que a decisão de executar o ataque na terça-feira teve como estopim a descoberta, por dois agentes do Hezbollah, de que os dispositivos haviam sido adulterados.
Segundo o jornal, o plano original de Israel era detonar os pagers somente no caso de uma guerra total com o Hezbollah, a fim de obter uma vantagem estratégica sobre a organização, mas a descoberta precoce dos explosivos acabou apressando a execução.