15/09/2024 - 7:31
Passava das 21h30 quando o paleontólogo Alexander Kellner desembarcou no Santos Dumont e levou um susto ao dar de cara com o filho mais velho na saída do aeroporto. “Que coincidência!”, escancarou um sorriso. “Você por aqui?”. “Pai, temos um problema”, avisou, com o semblante preocupado. “O que houve? Aconteceu alguma coisa com a sua mãe?”, quis saber, temendo o pior. “Não, pai, fogo!”, respondeu, apreensivo. “Ai, meu Deus! Meu apartamento pegou fogo? “, entrou em desespero. “Não, pai, o museu!”, revelou, sem disfarçar a tristeza.
Na noite daquele domingo, 2 de setembro de 2018, o Museu Nacional foi destruído pelo fogo. Os bombeiros só conseguiram controlar as chamas na madrugada de segunda. “Se pudesse voltar no tempo, sabe o que eu faria de diferente? Nada!”, responde Kellner. “É frustrante dizer isso, mas é a verdade. Não havia nada que eu pudesse ter feito naqueles seis meses de gestão que eu não tivesse feito. Não quero me eximir de culpa, mas a administração anterior tinha que ter gritado o que estou gritando agora: ‘Sem dinheiro, não há museu!'”
No início deste mês, o incêndio do Museu Nacional completou seis anos. A previsão mais otimista para sua reabertura parcial, explica Kellner, é 2026. Mas, para isso acontecer, a instituição precisa de R$ 95 milhões. Parte desse dinheiro será usado na recuperação das 50 mil peças resgatadas no meio das cinzas. Algumas delas, como o meteorito Bendegó, que pesa 5,6 toneladas e foi encontrado na Bahia em 1784, estão em bom estado. Outras, como Luzia, o mais antigo fóssil humano da América do Sul, descoberto em Minas Gerais em 1975, nem tanto.
“Quando resgatamos Luzia, caímos no choro”, recorda. “Amélia que me desculpe, mas a mulher de verdade é Luzia. Resistiu a 11 mil anos e, depois, a um incêndio de grandes proporções”, brinca o cientista, numa alusão ao samba Ai que Saudades da Amélia (1942), de Mário Lago (1911-2002) e Ataulfo Alves (1909-1969).
Para o final deste ano, ele anuncia a abertura simbólica do museu, com a exposição do esqueleto de uma baleia Jubarte de 15,5 metros. Segundo o cronograma do projeto Museu Nacional Vive, a reabertura total está prevista para 2027-2028.
Risco de desabamento
No Rio de Janeiro, dois imóveis gritam por socorro. Não pegaram fogo, mas estão em ruínas. Um deles fica no Centro. É o número 13 da Travessa do Comércio. Lá, morou, em 1925, a atriz e cantora Carmen Miranda (1909-1955). Parte do telhado desabou na madrugada de 15 de julho. O outro imóvel fica na Zona Sul. O casarão na Rua Cosme Velho, 343, apresenta sinais de abandono. O endereço, citado no poema Estive na Casa de Candinho (1962), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), foi a residência do pintor Cândido Portinari (1903-1962) entre 1943 e 1950. Ali, ele produziu, entre outras 1,6 mil obras, a série Retirantes (1944) e o painel Tiradentes (1948).
O curioso é que os dois imóveis, tanto o de Carmen quanto o de Portinari, são tombados pelo patrimônio histórico. “Os imóveis de propriedade privada, que são preservados ou tombados, devem ser mantidos em bom estado de conservação por seus proprietários”, explica a arquiteta e urbanista Laura Di Blasi, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). “O município fornece incentivos, porém, não cabe ao poder público, nem é permitido, investir dinheiro em propriedade privada.” O que o município pode fazer, prossegue, é fiscalizar, notificar e multar, entre outras providências, sempre que constatar irregularidades.
A prefeitura do Rio instalou 278 placas azuis em endereços históricos, entre bares, teatros, praças e prédios. Só na Nascimento e Silva, em Ipanema, há duas: uma no número 107 e outra no 378. No primeiro endereço, morou Tom Jobim (1927-1994), entre 1953 e 1962, e, no segundo, Renato Russo (1960-1996), entre 1990 e 1996.
“Tombar não é a única e nem sempre a melhor opção. A solução pode ser dar um novo significado ao imóvel. Um bom exemplo é o Edifício A Noite, na Praça Mauá. O imóvel, que antes abrigou a Rádio Nacional, dará lugar a um condomínio de luxo. Ganha um novo uso ao mesmo tempo que preserva a memória e a cultura locais”, afirma Di Blasi.
Luta inglória
Filho único do pintor Portinari, o matemático João Cândido Portinari conta que o casarão onde morou seu pai foi comprado por um empresário em 2002 e doado ao Projeto Portinari para que fosse restaurado e transformado em centro de arte, educação, cultura e ciência. Há pelo menos uma década ele tenta realizar esse projeto, mas não consegue por falta de apoio, tanto do poder público quanto da iniciativa privada. O maior obstáculo, segundo ele, não é o restauro do imóvel ou a implantação do centro, mas, sim, sua manutenção institucional.
“Quando perguntaram a meu pai se ele tinha ficado triste por não ter sido eleito senador em 1947, ele respondeu: ‘Na vida, cada um de nós tem uma tarefa. A minha é pintar’. Digo o mesmo: A minha missão é o Projeto Portinari. Manter o Projeto Portinari vivo e atuante durante 45 anos tem sido uma luta renhida que não deixa fôlego para outras lutas”, afirma João.
Criado em 1979, o Projeto Portinari mantém um acervo de 9 mil cartas e 130 horas de gravação, de personalidades como Manuel Bandeira (1886-1968), Graciliano Ramos (1892-1953) e Cecília Meireles (1901-1964).
“Não é apenas uma casa”
Muito antes de Portinari, o Cosme Velho teve outro morador ilustre: Machado de Assis (1839-1908). Ele morou no número 18 da Rua Cosme Velho, de 1883 até 1908, quando morreu. Lá, escreveu seus últimos romances, como Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Infelizmente, o sobrado onde o ‘Bruxo do Cosme Velho’ – apelido dado por Drummond – viveu não existe mais: virou um edifício residencial.
Destino parecido deve ter o número 12 da Rua Oscar Bittencourt, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. A antiga casa do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) foi demolida em 18 de julho de 2022. O imóvel não era tombado. “Não sei os pormenores da demolição. Em tudo há interesses diversos, verdades múltiplas. Mas compreendo bem a sensação de luto. Em vez de transformado em local de culto e inspiração, seu retiro pessoal abrigará agora, talvez, 12 andares, 50 apartamentos, 130 pessoas entrando e saindo com pressa pela garagem”, lamentou Martha Medeiros na crônica Não é Apenas Uma Casa.
“O tombamento não é uma decisão do Iphan, mas uma iniciativa da sociedade”, explica o sociólogo Leandro Grass, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Até onde se sabe, não houve solicitação de tombamento de nenhum desses imóveis.”
Memória revisitada
Atualmente, o Iphan registra 1.265 bens tombados, desde móveis, como quadros, imagens e xilogravuras, até imóveis, como igrejas, teatros e museus. “Há quem diga que o patrimônio é um obstáculo para o desenvolvimento. Não é. Pode gerar receita e atrair turistas”, acrescenta Grass.
É o que acontece, por exemplo, na Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), em Porto Alegre, e na Casa do Rio Vermelho, em Salvador. A primeira funciona no antigo Hotel Majestic, na Rua dos Andradas, 736, onde o poeta Mário Quintana (1906-1994) viveu de 1968 a 1980. E a segunda na residência do casal Jorge Amado (1912-2001) e Zélia Gattai (1916-2008), na Rua Alagoinhas, 33, comprada com a venda dos direitos de Gabriela, Cravo e Canela (1958) para o cinema.
Na capital gaúcha, o espaço mais visitado é o quarto do poeta, que guarda, entre outros objetos pessoais, óculos, bengala e casaco. Na baiana, um dos itens mais pesquisados é acervo de cartas, que abrange correspondência com Monteiro Lobato (1882-1948), Dorival Caymmi (1914-2008) e Oscar Niemeyer (1907-2012).
“Em 2003, no aniversário de Jorge, Dona Zélia decidiu abrir a porta da casa para receber visitas. Foram distribuídas 600 senhas, que se esgotaram em menos de uma hora. Cerca de duas mil pessoas fizeram fila para visitar o local”, relata a publicitária Maria João Amado, neta do casal. “Neste dia, ela decidiu que a única destinação possível para a Casa do Rio Vermelho seria transformá-la em um memorial dedicado à vida e obra de Jorge Amado.”