15/08/2024 - 19:27
Desde que o jornal Folha de S. Paulo revelou trocas de mensagens entre o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), e seus então assessores na presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para ordenar informalmente a produção de relatórios contra bolsonaristas que embasaram suas decisões como relator dos inquéritos das fake news e das milícias digitais, os processos passaram a ser colocados sob dúvida.
Moraes afirmou na quarta-feira, 14, que a solicitação de relatórios foi registrada e ele exercitou o “poder de polícia” do TSE para contextos eleitorais. No plenário do STF, a atuação do magistrado também foi defendida por Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
O site IstoÉ ouviu quatro especialistas das áreas do direito constitucional e direito penal para entender se as revelações podem impactar em decisões proferidas pelo magistrado. Houve consenso quanto à inexistência de base para contestação formal sem acesso integral aos diálogos e ao papel das provas coletadas neles nas decisões.
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Comunicação informal
Em capturas de tela obtidas pelo jornal, Moraes pediu informalmente a Eduardo Tagliaferro, que na época chefiava a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do tribunal — órgão usado para produzir provas contra suspeitos na campanha e após as eleições de 2022 — para produzir relatórios contra personagens específicos. O magistrado enviou uma publicação de Rodrigo Constantino, apoiador de Jair Bolsonaro (PL), em um grupo de WhatsApp, onde escreveu: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse para vermos se dá para bloquear e prever multa”.
De acordo com Georges Abboud, professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica), as conversas com esse teor representam uma “solicitação de elaboração de relatórios com base em dados públicos, no caso, postagens em redes sociais”, que está dentro da institucionalidade da atuação do ministro.
Para Davi Tangerino, advogado criminal e professor de direito penal da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), o rito do processo penal não impede Moraes de “ordenar a produção ou compartilhar provas”. “[O diálogo] configura falta de formalidade, não ilicitude”, acrescentou.
“Requerer [por mensagens] produção de provas e relatórios a assessores, desde que eles sejam registrados, representa uma falta de formalismo, mas não é ilícito”, disse Frederico Crissiuma de Figueiredo, advogado criminal da Castelo Branco Advogados Associados.
Por determinação de Moraes, perfis de Constantino foram derrubados das redes sociais como parte do inquérito das fake news. Em outubro de 2023, o produtor de conteúdo recorreu ao Supremo para retirada das sanções, afirmando ter sofrido constrangimento ilegal, mas o ministro Cristiano Zanin negou.
Ministro em um, presidente em outro
Uma mensagem de áudio mostrou Airton Vieira, juiz instrutor do gabinete do ministro no STF, orientando um servidor do TSE a produzir um relatório sem mencionar o Supremo. “O ministro passa por uma fase difícil, qualquer detalhe pode virar amanhã ou depois mais um objeto de dor de cabeça para ele”, explicou.
“Fica estranho, porque não tenho como mandar para você, que é lotado no TSE, um ofício ou pedir alguma coisa sem mais nem menos. Eu teria que mandar um ofício para o presidente do TSE, pedindo que ele repassasse essa ordem, para que você me atendesse, embora saibamos que, entre nós, as coisas são muito mais fáceis, justamente porque temos como mínimo múltiplo comum a figura do ministro [Moraes]”, disse Vieira.
A respeito da relação entre coleta de provas que intersecionavam os dois tribunais, Georges Abboud considerou não haver margem para o apontamento de inconstitucionalidade. “O desempenho simultâneo das duas funções [no STF e no TSE] é meramente uma decorrência da Constituição. É normal que os dois gabinetes se comuniquem, mesmo que a pessoa física do ministro seja apenas uma“, disse.
“Uma das questões abertas é que em nenhum outro momento um ministro presidiu o TSE e simultaneamente relatou um inquérito dessa envergadura. Por isso, não há regulação para uma situação como essa“, afirmou Raquel Scalcon, professora de direito penal da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas).
Provas sob demanda
Segundo o jornal, diálogos deixaram claro que Moraes pediu a produção de relatórios e determinou a necessidade de incrementá-los com novos materiais e provas. “Ele cismou com isso aí. Como ele está nesses dias sem sessão, ele está com tempo para ficar procurando (…) É melhor por [as postagens], alterar mais uma vez, aí satisfaz sua excelência”, disse Vieira para Tagliaferro, em referência ao acréscimo de novas publicações de um investigado a pedido do magistrado.
Vieira ainda disse ao colega: “Se for ficar procurando [postagens], vai encontrar, evidente. Mas como você disse, o que já tem é suficiente. Mas não adianta, ele [o ministro] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”. Após a conversa, o juiz instrutor enviou para Tagliaferro cópia de decisões sigilosas de Moraes, parte do inquérito das fake news, que se deram com base nesse relatório. Para Crissiuma, é essa conduta que abre margem para suspeição da atuação do ministro.
“Como juiz de um inquérito, Moraes tem o poder de requerer a produção de provas, mas não de interferir no conteúdo delas. Não cabia a ele pedir ajuste de relatórios, ‘cismar’ com um investigado ou influir na produção de uma prova com uma decisão em mente. Essa conduta, aparente nas mensagens, sugere que o ministro tinha uma decisão em mente, e pediu a produção de relatórios que a embasassem, o que abre margem para contestação. Esses relatórios embasaram decisões de ofício, que não passaram pelo parecer da Procuradoria-Geral da República. Fins não justificam os meios”, disse o advogado.
Para Raquel Scalcon, professora de direito penal da FGV-SP (Fundação Getulio Vargas), algumas perguntas devem ser feitas diante do fato: “Houve produção de provas de maneira informal? Houve pré-direcionamento dessa produção? Como elas afetaram investigados? Se essas ações tiverem ocorrido às margens do inquérito, sem registro, elas quebram as regras do processo penal e perdem valor jurídico como provas”.
“Parte dos inquéritos [das fake news e das milícias digitais] é sigilosa. Para colocar as decisões em suspeição a partir das mensagens reveladas, é necessário ter acesso à integridade deles e concluir quais provas eram essas [citadas nas mensagens], se e como fazem parte dos autos”, acrescentou a professora.
Os especialistas concordaram quanto à falta de base para contestação à luz da comparação com a anulação de sentenças da Operação Lava Jato. “Naquele caso, a comunicação se deu entre juiz e acusação, o que é ilícito”, disse Abboud. “As mensagens não revelam violação ao contraditório ou ao direito de defesa. A comunicação na Lava Jato se dava entre partes [juiz e acusação], não entre funcionários de uma mesma parte“, concluiu Tangerino.