14/06/2024 - 8:00
Ruy Castro tinha vinte anos quando entrevistou Tom Jobim pela primeira vez, em 1968. Era repórter em início de carreira — chamado de “foca”, à época — e, recém-saído da Faculdade de Ciências Sociais, trabalhava no jornal carioca Correio da Manhã. Tom Jobim, aos 41, já havia composto “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Eu Sei que vou te Amar”, apenas para citar três entre suas tantas obras-primas. Desde então, a relação entre jornalista e ídolo só se estreitou, a ponto de Tom ter virado uma das fontes principais quando Ruy decidiu eternizar a história da bossa nova em Chega de Saudade. Debruçou-se mais tarde sobre as vidas de Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda, entre outras biografias que ajudam a contar, por meio de nossos personagens inesquecíveis, o que é ser brasileiro.
Ruy Castro lança agora O Ouvidor do Brasil — 99 Vezes Tom Jobim, livro que reúne crônicas publicadas no jornal Folha de S. Paulo entre 2007 e 2023. Não é uma biografia, como o próprio Ruy explica na entrevista ao lado, mas uma coletânea de pequenos e deliciosos textos atualizados e reescritos especialmente para essa edição.
São casos interessantes, curiosos, contados com um “sotaque” tão carioca que esquecemos que Ruy é de Caratinga, Minas Gerais. Quem poderia imaginar, por exemplo, que Tom, além de pianista, maestro e arranjador, ainda era piador? Sim, Tom gostava de imitar a voz dos pássaros, que ele aprendia nas matas do sítio da família, em São José do Vale do Rio Preto, perto de Teresópolis. Quando morou em Nova York, aprendeu a piar como os pássaros locais.
Na abertura do livro, o autor explica o título por meio de um verbete de dicionário. “Ouvidor. Aquele que ouve. Atento aos valores ambientais, urbanos, vegetais, animais, humanos e culturais, e de prontidão para defendê-los. Que ouve os sons do País, venham da floresta ou da cidade. Exemplo: Antônio Carlos Jobim”.
Ruy Castro, escritor
“A vida de Jobim não daria uma boa biografia porque nunca foi de altos e baixos. Só de altos”
Na crônica ‘Tom Entre Nós’ você diz que costuma se perguntar o que ele pensaria das coisas se estivesse entre nós. O que acharia do Brasil e do mundo atual?
É evidente que teria acompanhado o descalabro que se deu nos últimos trinta anos no meio ambiente e continuado a nos alertar. Talvez, com ele em cena, tivéssemos despertado mais cedo para o problema. O que acharia do Brasil e do mundo hoje estaria em frases perspicazes, como as que nos deixou. “O Japão é um país pobre com vocação para a riqueza e o Brasil, um país rico com vocação para a pobreza”, por exemplo. Com sua morte, perdemos um observador arguto e capaz de definir as coisas com poucas palavras que diziam tudo. Como, aliás, as letras da bossa nova.
Escrever 99 textos sobre um personagem demonstra grande conhecimento sobre ele. Por que não escrever logo uma biografia?
Porque acho que Tom não daria uma boa biografia. Sua vida nunca foi de altos e baixos, só de altos, e uma biografia não pode ser assim. O personagem precisa ter experimentado o sucesso e o fracasso, ter sido amado e desamado, ter pulado muro e fugido da polícia ou de algum marido. Tom era o bom moço. Mesmo no início de carreira, seu único problema era pagar o aluguel. Mas o homem Jobim, o que estava por trás do piano, é personagem perfeito para textos curtos. Como os que escrevi para esse livro.
Tom foi pioneiro na defesa do meio ambiente. Era apaixonado pela natureza ou antecipava os problemas que vemos hoje?
Acho que começou por sua paixão pela natureza. Alguns podem achar estranho que um garoto de praia como ele, criado em Ipanema, fosse se interessar pela vida rural, onde se corre o risco de pegar bicho-do-pé e pisar numa cobra. Mas a beleza do mar e do vento alertaram Tom para o milagre da criação, de que a floresta é rica — e para a necessidade de proteger esse milagre.
Como foi aquela ideia de batizar Ipanema de “Praia de Tom Jobim”?
Tive a ideia quando Tom morreu e o prefeito Cesar Maia quis mudar o nome da avenida Vieira Souto para Tom Jobim. Que demagogia era essa? O próprio Tom não gostou quando se mudou o nome da rua Montenegro para Vinicius de Moraes. “Agora os carros passam em cima do Vinicius e os cachorros mijam nele”, dizia. A ideia de uma placa parecia ideal, mas ninguém se interessou. Para piorar, deram o seu nome ao aeroporto do Galeão — ele, que tinha horror a avião.
Ainda concorda com Tom? O Brasil não é mesmo para principiantes?
Faz parte da nossa falta de caráter. O Brasil não só continua não sendo para principiantes como, nos tempos do Bolsonaro, foi difícil até para quem tinha pós-doc.