17/05/2024 - 8:00
Referência internacional em aquecimento do planeta, o climatologista Carlos Nobre alerta: o País não pode perder a oportunidade de aprender com a tragédia do Rio Grande do Sul, para alterar os rumos do catastrófico cenário previsto em razão das mudanças climáticas. “Ou o Brasil muda ou nos tornaremos um país arrasado por desastres naturais”, afirma. Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP e membro do Painel Global de Sustentabilidade, Nobre defende a necessidade de cuidar das matas, que reduzem em até 30% o efeito nocivo das enchentes e as transições do agronegócio para um modelo agropecuário regenerativo. “É hora da ciência”. Para ele, as ações devem estar voltadas à capacitação de brasileiros instalados em pontos vulneráveis, para a retirada quando houver risco. O cientista estima que cerca de 15 milhões de pessoas ocupam entre 700 mil e um milhão de residências em locais de alto risco, entre elas quatro milhões em pontos de altíssimo risco. Ele não se surpreendeu com a tragédia gaúcha que, conforme avalia, tem raízes num modelo agro que desmatou 80% da mata atlântica.
O que causa eventos climáticos extremos como os que atingiram o Rio Grande do Sul?
Recordes climáticos, como o ocorrido no Rio Grande do Sul, acontecem no mundo inteiro. Estamos vendo ondas de calor, secas e chuvas intensas. Em 2023 houve recorde de temperatura, com 1,48 grau mais quente do que a média do período 1850–1900. É a temperatura mais alta desde o período interglacial, 125 mil anos atrás. Entre março de 2023 e fevereiro de 2024, a temperatura já chegou a 1,56 grau, mais alta do que a dos meses cheios do ano passado. São os extremos climáticos.
Os efeitos nocivos são variados?
Em torno de 95% são fenômenos meteorológicos, oceânicos, climáticos, que sempre existiram. Só que agora ocorrem com muito mais frequência e com recordes, como se viu no norte do Afeganistão, uma região seca com chuvas que provocaram a morte de mais de 300 pessoas. No mês passado foi em Dubai, uma região desértica, onde em dois dias choveu mais do que a média do ano inteiro. Isso tudo tem a ver com o aquecimento global. Ele aumenta a temperatura do planeta e, especialmente, dos oceanos, que estão evaporando muito mais. O ar está mais úmido e isso induz um grande número de eventos climáticos extremos.
O que atenua a intensidade dos episódios?
Onde se preserva a natureza o impacto é menor. Numa região tropical com floresta, a temperatura baixa de três a cinco graus em comparação com áreas sem verde. A floresta evapora e transpira uma quantidade muito grande de água o ano todo, até na estação seca, aumentando a umidade e criando um microclima melhor até para o corpo humano. A floresta diminui até a intensidade de seca e quando chove muito. O solo absorve grande quantidade de água. Ela não consegue combater tudo, mas diminui os riscos.
O fato de o Rio Grande do Sul ter se desenvolvido como economia agrícola alterou a natureza a ponto de chegar à situação extrema?
Totalmente. O Rio Grande do Sul é um dos estados com menor índice de vegetação natural – 50% é mata atlântica, uma parte é os pampas. O desmatamento acabou com mais de 80% da mata atlântica no estado. Quando há chuva intensa sem árvores, o solo está compactado com pastagem da agropecuária, culturas agrícolas. Quando chove muito satura o solo, a água não penetra mais, aquilo tudo corre e enche os rios num nível muito mais alto do que se você mantivesse a floresta. Se os ecossistemas estivessem mais preservados, mesmo com chuvas recordes, o nível de inundação diminuiria de 20 a 30%.
O chamado novo normal é algo bem pior?
Novo normal significa que, se a gente continuar aquecendo o planeta e as emissões não baixarem rapidamente, poderá chegar a 2,5 graus na temperatura média global em 2050. Isso representa ondas de calor, secas e chuvas intensas com mais frequência.
Como proteger o clima na economia brasileira, baseada na produção de matéria-prima?
Modernas tecnologias na energia, agricultura e em todos os outros setores. Elas mostram soluções para reduzir as emissões, tornar a agricultura e a pecuária mais resilientes a esses eventos extremos. As áreas modificadas para agricultura regenerativa, onde há uma agropecuária mais sustentável, não chegam a 10%. É muito pouco. A agricultura e a pecuária regenerativas usam uma área muito menor e são mais produtivas e lucrativas. Resistem melhor aos eventos extremos. Esse é o caminho. No setor de energia a transição também é pequena. Mais de 80% do consumo do mundo ainda é fóssil. Um risco muito grande.
Como o Brasil caminha nessa área?
Nós estamos indo devagar para vencer o grande desafio da humanidade que é reduzir as emissões. Esses eventos extremos não têm mais volta. Temos que tornar os sistemas em que vivemos algo para nós mesmos, nossa saúde, sobrevivência e melhoria da produção de alimentos e manutenção da biodiversidade através de uma série de atitudes. Precisamos também de sistemas de alerta mais efetivos. Já melhorou, porque os eventos de setembro e de agora no Rio Grande do Sul foram anunciados com muitos dias de antecedência, com a previsão de riscos passada para as defesas civis.
O que falta?
As defesas civis ainda estão pouco preparadas. Precisam melhorar muito. A gente sempre compara com o Japão. É um país de inúmeros terremotos, não existe previsibilidade, o terremoto é previsto na hora em que começa. E aí todo mundo, desde a escola, foi educado para saber o que fazer nos terremotos. A infraestrutura de rodovias, tudo está mais resiliente. No Brasil esses eventos extremos são previstos com pelo menos três dias de antecedência. A defesa civil precisa ir imediatamente até as áreas de risco e tirar as populações. Precisamos de sirenes de alerta e ações para que os brasileiros sejam alojados com alimentos, medicamentos e água. Hoje todo mundo se comunica com celulares, mensagens, mas veja em quantas cidades do Rio Grande do Sul acabou a eletricidade e a internet. A população precisa ser capacitada para saber onde ir.
Quantos brasileiros vivem em áreas de risco e o que fazer para evitar tragédias?
O estudo de 2019 localizou oito milhões de pessoas, dois milhões em áreas de altíssimo risco. Um novo estudo vai colocar, certamente, uns 15 milhões – aqui estou estimando – entre eles quatro milhões em áreas de altíssimo risco, que não podem continuar vivendo nesses locais. São entre 700 mil e um milhão de residências. Como a gente viu no Rio Grande do Sul, dezenas de milhares de residências foram varridas pelas correntes muito fortes dos inúmeros rios. É um enorme desafio. A curtíssimo prazo, sirenes e capacitação da população, e no médio prazo, novas residências em locais seguros.
Para onde levar quem está em área de risco?
O Brasil tem gigantescas áreas. Agora, é lógico, o desafio é o custo. A grande maioria, acima de 80% das populações nessas áreas de risco, é de pobres e vulneráveis. Eles não podem comprar um terreno em outro lugar. É preciso apoio governamental. E aí, de novo, para tirar milhões e milhões de brasileiros dessas áreas de altíssimo risco, tem que ter um investimento grande dos governos federal, estadual e municipal. Também é preciso, como vimos pelos estragos no Rio Grande do Sul, transformar a infraestrutura de transportes em obra mais resiliente. Serão necessários dezenas de bilhões de reais para isso.
Como colocar engenharia de prevenção em programas como Minha Casa Minha Vida e o PAC?
No governo Dilma foram colocadas centenas de casas para populações pobres vulneráveis na cidade de Marabá, no Pará, na beira de um rio. Alguns anos depois uma chuva inundou todas. .
Como o senhor vê o negacionismo diante das previsões científicas?
É muito preocupante. Já foi menor no Brasil, mas cresceu por causa do populismo político de extrema direita, e às vezes até de extrema esquerda. Negam a ciência, os eventos climáticos e não incentivam os investimentos que têm que ser feitos para reduzir mortos e prejuízos em desastres. Acho que valeria a pena perguntar aos que ficaram nas casas se não saíram porque tinha outros familiares idosos, estavam com medo de ladrões ou porque não acreditam em mudança climática. Acho que negacionistas são pessoas de mais alta renda, que não moram ems áreas de altíssimo risco.
Como vem se comportando o poder público em relação às mudanças necessárias?
Não se ajustou. A primeira política de adaptação foi publicada em 2016 e pouquíssimo em orçamento foi implementado. O Brasil se compromete mais com redução das emissões em 50% zerando o desmatamento até 2030. Pouquíssimos países no mundo que vão ter esse sucesso, mas adaptação é baixíssima. Depende do governo federal e também das defesas civis municipais, com investimento que não acontece por conta dos políticos que estão no Congresso, assembleias e câmaras municipais. Não é o caso de Lula, que é muito preocupado com isso. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, não se diz negacionista, mas depois do evento horrível que matou 54 pessoas no ano passado, na bacia do rio Taquari, não aumentou o orçamento para 2024 para proteger a população. Isso é muito ruim. Ou o Brasil muda ou nós nos tornaremos um país arrasado por esses desastres naturais.
O caos é também uma boa oportunidade para despertar?
É exatamente isso que eu ia falar. Eu estou sendo otimista: não podemos perder essa oportunidade. Vai ter eleição de vereador e prefeito em outubro e novembro deste ano. Tenho dito que independente de ideologia, de partido político, não votem em negacionista. Eles causam um enorme risco para o país. É a hora da ciência!
Quais as outras regiões sensíveis aos eventos extremos no País?
Todos os estados. Tivemos, no ano passado, em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, a maior chuva da história do Brasil, com 600 milímetros em 24 horas, que matou 64 pessoas. Esses eventos acontecem na região serrana do Rio, quase 330 milímetros em 24 horas. No Espírito Santo, mais de 30 pessoas morreram. Não tem jeito: vai ser no mundo inteiro.