O número de crianças com excesso de peso e obesidade no Brasil é quase três vezes maior que a média global. Segundo dados do Ministério da Saúde, 14,2% das crianças de zero a cinco anos viviam nesta situação em 2022, enquanto que, no mundo, a taxa é de 5,6%. Entre os adolescentes, a situação é ainda mais preocupante: são 33% com excesso de peso e obesidade. No mundo, a média global é de 18,2%.

Para Cristiano Boccolini, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Observa Infância, o vilão que contribui para este quadro é conhecido: alimentos ultraprocessados.

“Esses produtos passam por processos de industrialização e recebem químicos que mudam a palatabilidade, ou seja, o sabor, dos alimentos. Eles passam a ter uma hiperpalatabilidade, passam a cativar, viciar, o paladar da população para consumir esses produtos”, explica Boccolini em entrevista à DW, mencionando refrigerantes, salgadinhos, biscoitos como exemplos.

Para as crianças, a obesidade traz uma série de problemas cognitivos a curto prazo, como baixo desempenho na escola, falta de atenção, má qualidade do sono. No decorrer da vida, elas tendem a ser adultos obesos e a desenvolver doenças articulares, diabetes, doenças cardíacas, insuficiência renal e hepática, câncer, problemas respiratórios, como asma.

Para Boccolini, o papel dos pais na luta contra obesidade infantil é fundamental. Abolir a compra dos ultraprocessados, que parecem mais baratos e fáceis de serem preparados, é um caminho. “É preciso resgatar os valores da alimentação saudável em casa, de preparar a comida, usar o tempo com a criança para cozinhar algo. Sabemos que a jornada de trabalho de muitos pais é cruel com grande parte da população e que eles não têm tempo com os filhos. Mas, sempre que possível, é preciso valorizar este momento de fazer comida de verdade em casa”, sugere o pesquisador.

Na Classificação Internacional de Doenças (CID), tabela que obedece a um padrão internacional para relacionar problemas ligados à saúde, a obesidade recebe o código E66. Mas, nos bastidores da discussão acadêmica, há quem prefira usar termos como “condição”, ou “estado de saúde”, para falar de pessoas com acúmulo de gordura excessivo no corpo, diz Boccolini.

DW: Qual é o cenário da obesidade infantil no Brasil e como o país coleta os dados?

Cristiano Boccolini: Pode-se considerar o Brasil um país privilegiado em termos de informação. Nós contamos com o Sistema de Informação de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), em que cada unidade de saúde pode registrar o peso, altura, idade e outras informações nutricionais relevantes. O sistema permite o monitoramento contínuo do estado nutricional das crianças brasileiras. Existem ainda pesquisas nacionais sobre o estado nutricional, embora seja mais difícil acompanhar os dados ao longo do tempo.

A última feita no Brasil foi o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), uma pesquisa científica para avaliar crianças menores de cinco anos, feita em 2019.

Em 2023, o Sisvan mostra que 14,2% das crianças com menos de cinco anos de idade têm excesso de peso, ou obesidade. Uma a cada sete crianças. Quando a gente compara estes números com a média global observada e publicada em 2022, a média global 5,6%. Ou seja, no Brasil é quase três vezes mais.

Entre os adolescentes, são 33% com excesso de peso, ou seja, um a cada três. A média global é de 18,2% entre os adolescentes, ou seja, o Brasil está praticamente com o dobro de excesso de peso.

Em relação à América Latina, os indicadores apontam que 8,6% das crianças de até cinco anos sofrem de excesso de peso ou obesidade. Entre os adolescentes, são 30,6%.

O que estes números dizem sobre a infância no Brasil?

Existe esta impressão de que o excesso de alimentação, excesso alimentar, estaria relacionado com a obesidade. Parece conflitante duas informações que a gente tem: na pandemia, a gente teve metade praticamente da população sofrendo de insegurança alimentar e nutricional; ao mesmo tempo, houve um aumento da obesidade

Esta informação aparentemente paradoxal mostra algo muito perverso do nosso sistema alimentar, que cada vez está mais dependente dos alimentos ultraprocessados. São alimentos que – muitos chamam de produtos ultraprocessados – recebem adição de conservantes, estabilizantes e outros aditivos químicos.

Esses produtos passam por processos de industrialização e recebem químicos que mudam a palatabilidade, ou seja, o sabor, dos alimentos. Eles passam a ter uma hiperpalatabilidade, passam a cativar, viciar, o paladar da população para consumir estes produtos.

Estes produtos, em relação aos alimentos considerados saudáveis, aparentam ser mais baratos. Um pacotinho de macarrão instantâneo é mais barato, por exemplo, do que um quilo de macarrão. Há uma aparência de preço menor e facilidade de preparo maior, ou seja, parece ser mais barato e é mais fácil de consumir. Você abre um pacote de bolacha e come, esquenta um pote de macarrão instantâneo no micro-ondas e está pronto.

Para uma família que está numa situação que não consegue ter dinheiro para comprar comida, muito menos para comprar o gás, isso é mais fácil. Em situação de insegurança alimentar e nutricional, as famílias recorrem mais a produtos ultraprocessados.

Uma metanálise com mais de 10 mil pessoas no mundo mostra que o consumo de ultraprocessados está diretamente associado à obesidade. Quanto mais ultraprocessados a gente consome, maior a chance de ter obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, infarto, demência, ansiedade, transtornos mentais. São 33 doenças elencadas como estando diretamente associadas ao consumo de ultraprocessados.

Qual é o efeito da obesidade no crescimento da criança e como ela chega à vida adulta?

Há uma série de consequências. A curto prazo, o excesso de peso e obesidade podem estar mascarando uma desnutrição – outro paradoxo. Esta criança pode estar com deficiência de vitamina A, ferro, zinco, vitamina B12. Essas deficiências podem prejudicar a curtíssimo prazo o desempenho dessa criança na escola, a atenção, a qualidade do sono, por exemplo. São efeitos cognitivos associados.

A médio prazo, essas crianças e adolescentes têm risco de desenvolver diabete tipo 2 e hipertensão, além de distúrbios de sono, ansiedade, depressão. Temos observado o aumento da incidência destas doenças crônicas entre adolescentes obesos.

Na vida adulta, essas pessoas tendem a ser adultos obesos com uma série de carga de doenças associadas à obesidade que vão desde doenças articulares, problemas nas costas, diabetes, doenças cardíacas, insuficiência renal e hepática, câncer, problemas respiratórios como asma.

O Brasil, com esse número de crianças obesas acima da média global, lida corretamente com esta situação?

O país é um dos países signatários do compromisso para deter o avanço da obesidade infantil, da Organização Mundial da Saúde.

Há várias ações públicas que vêm sendo tomadas para combater esta condição. Há um guia alimentar que contraindica o consumo de ultraprocessados. Houve a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, em que as escolas públicas compram alimentos frescos de produtores locais e cozinham para as crianças, aumentando a oferta de alimentos saudáveis para os alunos. Também houve a volta do acompanhamento do estado nutricional das crianças dentro do Bolsa Família.

É preciso avançar nos estados e municípios em legislações que protejam o ambiente alimentar das crianças, que restrinjam o consumo de ultraprocessados nas escolas, como refrigerantes, doces e salgadinhos.

E qual a mensagem para os pais?

O governo tem o dever de promover políticas para uma alimentação saudável. Mas o papel dos pais é fundamental, principalmente o de não cair na tentação de comprar esses produtos para as crianças: biscoitos, refrigerantes, sucos industrializados, salgadinhos. Muitas vezes, as crianças acabam viciadas nesses sabores, que são relativamente cómodos e fáceis de serem comprados.

É preciso resgatar os valores da alimentação saudável em casa, de preparar a comida, usar o tempo com a criança para cozinhar algo. Sabemos que a jornada de trabalho de muitos pais é cruel com grande parte da população e que eles não têm tempo com os filhos. Mas, sempre que possível, é preciso valorizar este momento de fazer comida de verdade em casa, não usar temperos industrializados, mas os caseiros.

Esses produtos parecem bonitos, atrativos, fáceis de serem oferecidos e preparados, mas trazem consequências terríveis para as crianças. A atividade física, esportes coletivos, são componente importante desta equação.