20/05/2021 - 20:39
Todos os dias, adolescentes do Complexo do Alemão, uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro, se reúnem para jogar futebol em algum campo da comunidade. Em meio à pobreza escancarada, de pés no chão, eles se divertem durante a partida improvisada. Diariamente, mulheres acordam no interior do Nordeste, antes do dia clarear, para percorrer quilômetros e deixar seus filhos em creches ou escolas. Incansáveis, elas superam barreiras para garantir o acesso de suas crianças à educação. Quando o sol se põe na zona leste de São Paulo, trabalhadores das regiões mais afastadas encerram o expediente, encontram amigos em algum bar e falam sobre amenidades, para espantar as dificuldades do dia a dia.
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Mesmo diante da falta de perspectiva, eles renovam a expectativa de uma vida melhor. Cenas como essas mostram que o sorriso no rosto se tornou uma espécie de marca registrada do brasileiro. A atmosfera otimista foi captada por um estudo mundial sobre a felicidade, divulgado pelas Nações Unidas na segunda-feira 20, que coloca o Brasil na 22ª posição em uma lista de 155 nações. Em contrapartida, um dia depois, outro relatório da ONU, que mede o índice de desenvolvimento humano, nos colocou no 79º lugar entre 188 países e apontou que, desde 2010, é a primeira vez que o indicador estagnou.
Para algumas nações, tais indicadores mostram coerência. No índice realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Noruega, Suíça, Dinamarca e Austrália aparecem entre os dez países com melhor IDH do globo. Não é à toa, portanto, que são também as regiões que abrigam os cidadãos mais felizes. No caso do Brasil, os números revelam resultados aparentemente contraditórios. Um dos motivos que ajudam a explicar a conjuntura é a diferença na realização dos estudos. Para medir o IDH são utilizadas informações sobre renda, saúde, educação e expectativa de vida. “O conceito está relacionado às condições básicas para que a pessoa tenha possibilidades e consiga aproveitar oportunidades”, afirma à ISTOÉ Andréa Bolzon, coordenadora do estudo do Pnud. Já a pesquisa sobre a felicidade capta aspectos subjetivos dessas populações. “Questiona-se a autopercepção e como as pessoas se sentem diante da realidade em que vivem”, diz Saulo Rodrigues Filho, professor e especialista em índices do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Por isso, o Brasil alcança uma colocação melhor nesse ranking. “Apesar de todas as dificuldades do presente, há uma esperança em um futuro melhor e uma ideia de felicidade mesmo em condições precárias, o que pode ser visto também como resignação.”
Muitos intelectuais brasileiros explicam do ponto de vista sociológico a ideia da felicidade presente mesmo em um contexto de miséria e subdesenvolvimento. A metáfora do homem cordial, criada por Sérgio Buarque de Holanda, trata do ser humano passional, não pacífico. A intolerância é uma marca recorrente na história do País. A passionalidade, confundida com cordialidade e bondade, é usada para o bem e para o mal. “Isso pode ser uma chave para entender como nos percebemos felizes mesmo com uma visão alienada, confusa e irracional sobre nossa condição de vida”, afirma Paulo Silvino Ribeiro, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). “Há uma falta de percepção política sobre a nossa realidade.” Na canção de Chico Buarque, “Dura na Queda”, a letra traduz os sentimentos de uma mulher que enfrenta dificuldades no dia a dia, mas que resiste e se diz feliz. “Perdeu a saia, perdeu o emprego, desfila natural.” Ao mesmo tempo em que ressalta “a dor não presta, felicidade, sim.” Dessa forma é possível entender que tanto no período da escravidão, quanto na crise econômica, a felicidade é vista como um tipo de escape social.
No relatório da ONU, um dos fatores responsáveis pela estagnação do IDH é a queda na renda do brasileiro. “Esse movimento se reflete no PIB e significa menos dinheiro para manter um padrão de vida digno”, afirma Andréa. Quando o índice de desenvolvimento para ou cai, é preciso prestar atenção, uma vez que ele mede as condições mínimas para uma vida com qualidade. Segundo o documento, somos o 10º país mais desigual do mundo. A disparidade faz com que tenhamos cidades como São Caetano do Sul, em São Paulo, com a maior renda per capita do País, de R$2.043,74, e municípios como Marajá do Sena, no Maranhão, com R$ 96,25. “Retomar o crescimento econômico não basta, os benefícios do desenvolvimento têm que chegar a todas as classes”, diz a coordenadora. Nesse sentido, o relatório mostra que a exclusão de mulheres, negros e indígenas é um entrave ao avanço da economia. No Brasil, a desigualdade de gênero é um dos problemas mais sérios. Apesar de o nível educacional das mulheres ser mais alto, os homens ainda têm uma renda 66,2% superior.
Além disso, outros aspectos ainda rebaixam o Brasil diante de outros países. A elevada taxa de desemprego gera o aumento da pobreza e da informalidade. “Quando a economia estagna, diminuem os chamados low skill jobs (empregos de baixa habilidade) e quem depende deles fica sem nenhuma renda”, afirma Andréa. Embora a expectativa de vida tenha melhorado, o aumento da criminalidade ainda é responsável por inúmeras mortes em todas as regiões do País. O Brasil registra 60 mil homicídios por ano. O acesso à educação também apresentou melhoras do ponto de vista quantitativo, mas elas ainda são insuficientes. Para avançar no ranking e sermos um País de fato feliz é preciso investir em políticas de inclusão social e financeira, de ação afirmativa e no desenvolvimento humano sustentável, para que, em épocas de recessão, pessoas com menor poder aquisitivo não voltem à situação de pobreza. “Devemos fazer uma autocrítica e encarar a nossa infelicidade”, diz Ribeiro, da Fespsp. “Historicamente, tivemos um sistema que se moldou de forma a não dar condições para o nosso bem estar, direitos e nossa cidadania.” E são esses os valores que precisamos alcançar.
Os indicadores brasileiros
79ª é a posição do Brasil no ranking do índice de IDH da ONU entre 188 países
O país ocupa o 10º lugar entre as nações mais desiguais do mundo
O Brasil caiu 19 posições no que se refere à desigualdade de renda
Em contrapartida, o País ocupa a 22ª posição entre as nações mais felizes do planeta em um ranking de 155
O mais alegre é a Noruega, E o mais infeliz, a República Centro Africana