A quatro horas de distância do Rio, a pequena cidade de Cantagalo guarda para si uma relíquia sui generis: o cérebro de Euclides da Cunha. Foi naquele município da região serrana que nasceu o autor de Os Sertões, uma das mais importantes obras da literatura brasileira. E até hoje há muita referência ao seu filho mais ilustre.
Euclides da Cunha nasceu em 1866 na Fazenda da Saudade, distrito cantagalense de Santa Rita do Rio Negro. Hoje, 157 anos depois, a fazenda não existe mais e deu lugar a uma indústria cimenteira. Restaram no local um busto do escritor e uma demarcação geográfica – o terceiro distrito mudou de nome para Euclidelândia.
Além desse busto, há outro na pracinha no centro de Cantagalo, uma farmácia euclidiana, uma padaria com o mesmo nome, uma escola e até mesmo um sabor de pizza. Grupos de estudo e de discussões sobre a obra de Euclides da Cunha são comuns – o autor é assunto obrigatório nas escolas.
Por cerca de 12 anos, porém, a cidade se viu órfã de seu principal espaço dedicado ao escritor. A Casa de Euclides da Cunha, museu que guarda um respeitável acervo sobre ele, ficou fechada. Reabriu apenas no mês passado – e agora espera recuperar a movimentação de outrora.
No espaço, é possível encontrar uma câmera fotográfica e uma rede que pertenceram ao escritor. Também livros e artefatos históricos, como projéteis e granadas retiradas do solo de Canudos, povoado baiano para onde Euclides foi enviado como correspondente de guerra do Estadão, em 1897. A experiência o inspiraria a escrever sua obra-prima.
DOAÇÃO
Mas a principal relíquia da Casa de Euclides da Cunha é o encéfalo do escritor. Ele está guardado sob uma redoma de mármore, localizada bem no centro da sala principal. “A presença do cérebro dá uma aura especial. Ele foi uma inteligência, um ícone da literatura brasileira”, diz Fany Abrahim. Professora aposentada, ela dirigiu o museu por mais de três décadas. E foi nos primeiros anos de sua gestão, em 1983, que o cérebro do escritor chegou ao local.
“Meu primeiro passo foi manter um bom relacionamento com os familiares de Euclides, que moravam no Rio. Eu me tornei amiga muito íntima das netas e bisnetas dele. Um dia, li em um jornal que o encéfalo de Euclides estava no Rio de Janeiro, no Museu Nacional. Perguntei se os familiares podiam doar”, recorda.
A família aprovou a doação e o cérebro do escritor, preservado em um vidro com formol havia 74 anos, foi trasladado do Rio para Cantagalo. A chegada do órgão, em setembro de 1983, foi acompanhada de uma grande festa no município. “A gente tem testemunhos de que a cidade parou na chegada do encéfalo. Houve um cortejo que parou na prefeitura, na Câmara. Foi um momento histórico para o município”, relata Vinicius Stael, que assumiu a direção do museu recentemente.
Apesar do interesse histórico, quem vai hoje à Casa de Euclides da Cunha não consegue ver o encéfalo do escritor. Ele fica depositado sob um tampo de mármore, e só quem tem acesso (eventual) são os técnicos da Fundação Anita Mantuano de Artes (Funarj), órgão vinculado à Secretaria Estadual de Cultura, que administra o local.
LEI
“Existe uma lei que diz que corpos humanos não podem ficar expostos. E seria um pouco invasivo para a família”, justifica Stael. O Código Civil brasileiro autoriza a doação e exibição “com objetivo científico ou altruístico” de corpo humano de pessoa conhecida, mas desde que haja consentimento em vida ou dos familiares.
“Mas o encéfalo estar nessa redoma de mármore é exatamente o segredo do negócio. A pessoa pensa ‘será que está ali mesmo?’, ‘será que está conservado?’, ‘será que é grande ou pequeno?’”, acrescenta o diretor.
Criada em meados da década de 1960, a Casa de Euclides da Cunha funcionou de forma ininterrupta por quase 50 anos. Entre 1980 e 2012, foi administrada pela professora Fany Abrahim. Ela se aposentou naquele ano, e desde então o espaço ficou fechado.
Pessoas ouvidas pelo Estadão relatam que o fechamento foi resultado de um jogo de empurra. A casa pertence à Funarj, uma fundação estadual, e, com a aposentadoria de Fany, nenhum outro servidor foi deslocado para a cidade.
Nesse período, a prefeitura de Cantagalo tentou assumir a gestão. O pleito, porém, era por uma doação do espaço – o que nunca foi adiante porque o museu fica em um terreno amplo, onde também funciona uma escola estadual. Desmembrar o espaço não era uma tarefa simples e exigiria um esforço político maior que os lados pareciam comportar.
Ainda assim, na última década, a Casa de Euclides da Cunha sempre abriu para visitas agendadas. Por isso, seu acervo se manteve preservado e o espaço está muito bem cuidado. Além disso, recebeu adequações de acessibilidade e segue a legislação contra incêndio. Agora, quem for ao local, entre segundas e sextas-feiras, poderá visitar de forma gratuita o espaço dedicado à memória de um dos maiores escritores brasileiros. Só não vai conseguir ver o cérebro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.