Baterista norueguês Paal Nilssen-Love toca com músicos brasileiros em projeto de Free Jazz

Baterista norueguês Paal Nilssen-Love toca com músicos brasileiros em projeto de Free Jazz
Baterista norueguês Paal Nilssen-Love toca com músicos brasileiros em projeto de Free Jazz Foto: Ivan Cruz/Divulgação

Em um mundo cada vez mais separado por fronteiras e ideologias, é um alívio constatar que há, pelo menos, uma área da existência humana que permanece inabalada como linguagem universal: a música. Reúna um grupo de artistas e seus instrumentos, e eles inevitavelmente encontrarão uma forma de se relacionar, não importa o estilo ou de que canto do planeta venham.

A turnê do projeto Nor-Bra Love 3:3, que se apresenta hoje no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, é uma prova disso. A proposta nasceu do superbaterista norueguês Paal Nilssen-Love, um virtuoso do jazz contemporâneo que costuma reunir no mesmo palco artistas de diversas nacionalidades para sessões de improviso e free music. Do veterano saxofonista japonês Akira Sakata a jovens grupos de música étnica de Addis Ababa, na Etiópia, Love cria sonoridades únicas por onde passa, estimulando a contribuição entre escolas musicais completamente diferentes e, com isso, criando sonoridades inéditas.

É exatamente para isso que ele está no Brasil. A iniciativa partiu de uma joint venture entre o escritório estatal de cultura da Noruega, Music Norway, coordenada por Aslak Oppeboen, e a agência internacional Connectig Dots, liderada pela portuguesa Anabela Cunha.

O primeiro passo para um projeto desta natureza é a montagem do time. Love trouxe dois músicos noruegueses com quem já trabalha há algum tempo. O primeiro é seu parceiro de longa data Rolf-Erik Nystrom, saxofonista que, por coincidência, já havia passado uma temporada no estado de Alagoas pesquisando ritmos e melodias regionais. Sua grande característica é a versatilidade: já gravou desde álbuns de música barroca, como o elogiado “Oriental Winds of Baroque”, ao lado do multi-instrumentista Kouame Sereba, da Costa do Marfim, e do espanhol Jesús Fernández Baena, até discos de música regional brasileira, como “Bem-Ti-Vi”, onde acompanhou Nelson da Rabeca. Nystrom já se apresentou em mais de 50 países, do Egito ao Sri-Lanka, de Angola ao Japão. Na África do Sul, apresentou uma performance ao lado do escritor J.M. Coetzee, vencedor do Nobel de Literatura.

O outro norueguês que está no País a convite de Love é o acordeonista Kalle Moberg. Hoje com 28 anos, ele começou a tocar com o baterista em 2017, em de seus projetos fixos, o grupo Large Unit. Além do talento para unir o tradicionalismo europeu de seu instrumento – o acordeão foi criado em 1829, na Áustria – e o jazz contemporâneo, Moberg é conhecido por ter ocupado um cargo no Palácio Real Norueguês. Era Kapellmeister, o responsável pela música na corte. Sua escolha de repertório costumava levar a princesa Martha Louise às lágrimas, principalmente quando interpretava a dramática “Gillerasingen”, tradicional canção escandinava.

Para criar o Nor-Bra Love 3:3, aos três noruegueses se juntaram três brasileiros. O primeiro foi o carismático compositor, cantor e violonista maranhense Negro Leo, frequentador de festivais internacionais como o holandês Le Guess Who e o Berlin Jazzfest. Foi na Alemanha, inclusive, que conheceu Paal Nilssen-Love, ocasião em que lhe fez o convite. Leo trouxe a contrabaixista paulistana Vanessa Ferreira, cofundadora da Orquestra Laboratório Bastet e musicista residente da São Paulo Big Band, e o percussionista carioca Pablo Carvalho, codiretor do coletivo BERRO e cofundador do grupo Quilombo Etu. Com a escolha dos músicos, partiu-se para uma residência artística em Ilhabela, litoral paulista, onde seria elaborado o repertório da turnê brasileira.

UM TEATRO NO MEIO DA FLORESTA

A temporada em Ilhabela merece um capítulo à parte. Não apenas porque é um dos lugares mais especiais do Brasil, por sua beleza natural e geografia privilegiada. Mas porque o local que os abrigou para os ensaios, e que também seria o palco do show de estreia, foi o Instituto Baía dos Vermelhos, no sul da ilha. Há poucos palcos no mundo como Vermelhos.

É o resultado de um ambicioso e altruísta sonho do advogado Samuel Mac Dowell Figueiredo, um conhecido patrono das artes e uma espécie de Fitzcarraldo em versão brasileira. Assim como no filme de Werner Herzog, em que um admirador de Enrico Caruso planeja construir uma casa de ópera em plena floresta Amazônica, Mac Dowell ergueu em meio à densa vegetação da Ilhabela um dos mais incríveis complexos culturais do planeta. Além de um grande teatro, com capacidade para mais de mil pessoas, há um anfiteatro e um clube de jazz, todos realizados com projeto do arquiteto Marcos Castro de Figueiredo, sócio do escritório paulista Vazquez & Junqueira.

Love e seu novo grupo ficaram hospedados em uma das casas da propriedade, onde tiveram a liberdade para compor e definir o setlist da turnê pelo País. Obra em andamento, a construção de dez chalés, com capacidade para cerca de vinte pessoas cada, pretende ampliar a oportunidade de residências temporárias no Instituto Vermelhos e estendê-las a artistas plásticos e escritores. Ou seja: o futuro reserva boas notícias para a cultura de Ilhabela e do Brasil.

TURNÊ BRASILEIRA

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Felipe Machado

O primeiro show do grupo Nor-Bra Love 3:3 foi no próprio Vermelhos, na última sexta-feira (3/2). Na sequência, se apresentaram no Auditório Cláudio Santoro como parte do Festival de Verão, em Campos do Jordão (5/2). Hoje (8/2) o show é no Sesc 24 de Maio, em São Paulo; Amanhã (9/2) tocam no Sesc Jundiaí. A turnê termina com apresentações no Rio de Janeiro, de 10 a 12/2.

O estilo do Nor-Bra Love 3:3 é difícil de definir, uma vez que cada músico traz suas influências para a performance. Pode, no entanto, ser resumido dentro do conceito de free jazz, com muito improviso e experimentalismo.

Enquanto Paal dá o ritmo, Nystrom e Moberg se alternam nas linhas melódicas principais, sempre enveredando por possibilidades surpreendentes. Em um dos temas, os músicos noruegueses improvisam sobre melodias nordestinas na cadência do frevo; em outra passagem, uma canção tradicional norueguesa se transforma em um forró.

Cada show traz uma dinâmica original e inovadora, mas a principal característica é a coragem para, eventualmente, cometer deslizes. Quando um conjunto segue a partitura, no caso dos concertos convencionais, há relativamente pouco espaço para surpresas. Aqui, o risco de o resultado ser irregular é enorme – e isso acontece, sim, em alguns momentos. Há, no entanto, de se valorizar a beleza da experiência, uma vez que nesse caso a música pode servir até mesmo como metáfora para nossas próprias vidas: cometemos erros e acertos, e o resultado de nossa existência é a combinação entre essas realidades.

Love começou a carreira em casa. Literalmente: seus pais eram proprietários de um clube de jazz em Stavanger, cidade história fundada no século 12. O pai de Paal também era baterista, e sua trajetória como músico no estilo pós-Be Bop serviu como influência para ele durante anos. Foi em família que Love desenvolveu o gosto pelo jazz de vanguarda, representado por álbuns como “Bitches Brew”, de Miles Davis, e “New Things at Newport”, de John Coltrane e Archie Shepp, entre outros clássicos do estilo. Ele seguiu essa tendência em seu próprio festival, All Ears, evento sediado desde 2002 em Oslo, capital norueguesa. Hoje a agenda internacional o levou a se afastar da organização do festival, mas segue como consultor e músico convidado.

“NADA É MAIS PODEROSO QUE A MÚSICA LIVRE”

Paal Nilssen-Love conversou com ISTOÉ sobre os projetos internacionais e a importância do improviso para a sua evolução musical. “Uma parceria forte é aquela que nos leva a seguir trabalhando juntos. As relações que tenho com os músicos como os quais me relaciono são únicas. Costumo optar por trabalhar mais com artistas internacionais do que como músicos noruegueses, pois assim amplio meu conhecimento e acrescento à minha prática escolas como a música do Brasil e a da Eitópia, por exemplo, que são muito ricas”, afirma Love.

O baterista encara as residências fora da Noruega como oportunidades de adquirir novas experiências. “Mesmo quando trabalho com pessoas que não falam meu idioma, ou mesmo inglês, encontramos uma maneira de nos comunicarmos. Essa maneira é a música.” Love afirma que nunca pensou em seguir um caminho comercial, com o objetivo de tocar na rádio.

“Iniciar um projeto como estamos fazendo no Nor-Bra Love 3:3 é sempre excitante porque nunca sabemos o que pode acontecer. É importante ouvir as ideias dos outros. Mas é algo que surge no momento. Às vezes, o mais interessante pode ser o silêncio”, afirma. “A beleza desse estilo vem justamente de ele fugir do nosso controle. Nada é mais poderoso do que a música livre.”