06/10/2016 - 15:38
A edição de 5 de outubro de 2016 de ISTOÉ traz a matéria “Eles fazem a cabeça dos jovens“, que trata do trabalho dos autores, professores universitários e pensadores contemporâneos Leandro Karnal, Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho. Durante esta semana, ISTOÉ ONLINE publicará as entrevistas feitas com os três profissionais para embasar a reportagem assinada pela repórter Fabiola Perez. Os temas abordados são diferentes dos que foram tratados na matéria.
Hoje, confira a conversa com Clóvis de Barros Filho. Ele refuta a alcunha de pensador ou intelectual, mas em pouco mais de seis meses de dedicação exclusiva às palestras sobre temas filosóficos já conquistou milhares de novos admiradores e seguidores em redes sociais. O professor universitário, Clóvis de Barros Filho, deixou as salas de aula da Universidade de São Paulo (USP) para percorrer as empresas de todo o País e ministrar palestras inspiracionais. Na entrevista a seguir, Barros Filho fala sobre felicidade, relações sociais, ética privada e pública e como encontrar satisfação no dia a dia. Confira vídeo de entrevista com Clóvis de Barros Filho no final da matéria.
Clóvis de Barros Filho: “Hoje, há uma espécie de proliferação da canalhice”
Por Fabiola Perez
Existe ética hoje no país? Qual o seu significado no contexto brasileiro?
A ética é uma luta constante contra a canalhice. A falta de ética corrói as instituições. Existe ética sempre que duas pessoas precisam conviver. O que pode acontecer é que hoje há uma espécie de proliferação da canalhice, um estímulo recorrente às iniciativas auspiciosas. Uma sociedade eticamente bem estruturada. Do ponto de vista de ganhos e perdas, toda vitória do canalha é negativa. O benefício obtido pelo canalha não compensa o prejuízo que a canalhice acarreta junto aos demais. Toda iniciativa canalha, tomando para si patrimônio público é contabilizada como prejuízo. É uma perda social ininterrupta e despotencializada, fragilizada pelo triunfo de dois ou três. Estamos assistindo uma transformação da sociedade brasileira que parece mais consciente da necessidade de buscar soluções do que procurar repetir iniciativas canalhas.
O desejo pela felicidade é uma constante dos nossos tempos? Por que é importante falar sobre a busca pela felicidade hoje?
Podemos chamar a felicidade de várias maneiras, mas ela é, antes de tudo, uma palavra que, ao longo dos tempos, significou coisas muito diferentes. A felicidade pode ser entendida como aquilo que, na vida, tem valor maior. Um bem supremo. A felicidade seria o ponto final não no sentido de término, mas para onde tudo converge, todos os esforços e estratégias e escolhas buscam a felicidade. E, sendo assim, tudo o que fazemos tem valor secundário porque são apenas caminhos para alcançar essa felicidade. Coisas são boas e úteis na medida em que ajudam a alcançar a felicidade. Porém, a felicidade em si é inútil porque não serve para nada. Ela não é caminho para nada.
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O senhor lançou recentemente o livro “Felicidade ou Morte”, com Leandro Karnal. Há uma necessidade de retornar esse tema para o centro do debate?
A preocupação com a vida boa atravessa os séculos, em momento algum o homem abriu mão de refletir os pontos fortes da vida. Porém, as condições materiais para se viver bem, recursos naturais e condições econômicas, políticas e sociais mudam ao longo dos tempos. Aquilo que temos que fazer hoje para alcançar uma boa vida não é a mesma coisa que fazíamos em outras épocas. É importante buscar essas condições. Tudo o que está posto no mundo interfere na vida do homem e, portanto, é relevante para a felicidade.
Quais características sociais se sobressaem atualmente?
Chama a atenção que o mundo contemporâneo é marcado por uma intensificação das relações e aceleração das oscilações afetivas. Essa intensificação é garantida por todas as formas de comunicação digital. As tecnologias garantem isso e envolvem todo o mundo. Hoje podemos, em curto espaço de tempo, manter relações com o mundo de uma maneira mais intensa do que jamais ocorreu antes. Essas relações produzem efeitos afetivos e fazem oscilar nosso estado de espírito, nos alegram e nos entristecem e, de certa maneira, essa aceleração provoca estados afetivos mais curtos, as tristezas duram menos, surgem novos estímulos, um orgia de relacionamentos que nos leva a uma superficialidade de relações, ou seja, há certa horizontalização de relações que nos faz conviver de uma maneira muito particular em relação a outros tempos da nossa história.
As relações sociais do século 21 são mais efêmeras do que nos séculos anteriores? Elas “se desmancham no ar”?
Existe muito mais gente se relacionando em muito menos tempo. Com isso, há menos investimento nas relações. Isso é decisivo na hora de pensar a vida boa e feliz. Para tornar mais concreto, não há muito tempo para criarmos uma relação afetiva forte e de referência. Pensemos na lista de contatos que o WhatsApp nos fornece. As consequências desse processo são importantes. Um indivíduo que aposta suas fichas em todos os relacionamentos experimenta a liquidez e volatilidade dos afetos. Podemos substituir e ser substituídos muito mais rapidamente do que em outros tempos.
Como falar em felicidade em tempos de violência, crise econômica e crise política?
Tudo o que marca uma sociedade produz efeitos sobre o estado de espírito de seus agentes, portanto é evidente que uma situação de crise tem influência sobre o ânimo daqueles que estão concernidos nesse processo. Observo, porém, que muitos conseguem ter certa competência para blindar a vida dessas interferências. Os mais engajados chamariam isso de alienação ou falta de participação cívica. Mas me atrevo a dizer que é perfeitamente possível viver em grande medida protegido dos problemas sociais mais perturbadores através da construção de pequenos espaços – alguns chamarão de tribos–, que acabam costurando relações a partir de uma agenda muito específica e desconectada, em alguma medida, da realidade. Somos sempre ávidos por encontrar mundos que nos façam bem. Em alguns momentos a participação no espaço público é recorrentemente entristecedora. E leva muitos a um espaço de reclusão e entristecimento.
Como administrar esse estado de espírito, produto de uma realidade desconfortante?
Há duas formas de enxergar esse problema. A felicidade como uma espécie de reconciliação com o mundo como ele é, de amor pelas coisas como elas são. A felicidade é um momento de reconciliação com o mundo e intensa harmonia com as coisas como elas são. Isso é um tipo de sabedoria. Outra concepção é que a felicidade implicaria em um engajamento para mudar as coisas, aproximar o mundo de uma idealidade, a felicidade seria não mais uma reconciliação, mas um processo revolucionário. Karl Marx é um bom exemplo de quem vê a felicidade nessa luta transformadora e revolucionária.
Diversas manifestações sociais demonstram o crescimento de sentimentos como ódio, intolerância e discriminação? A que o senhor atribui isso?
O ódio é uma tristeza pelo que não conhecemos a causa. Sentimos ódio pelo outro quando o outro pensa diferente de nós. Nesse sentido, gostaríamos que muitos concordassem conosco. Podemos entender que as ideologias façam parte de um mercado e estejam em concorrência. Esse enfrentamento encontra um limite, um acordo entre todos sobre os processos institucionais que levarão ao triunfo de uns e disputa pelo poder de outros. Quando isso desrespeita regras institucionais, alcança proporções preocupantes. Torna-se um cenário de guerra e força física. É imprescindível que todos nós respeitemos as regras acordadas e legitimadas por todos. Quando se tripudiam as normas, abre-se uma brecha perigosíssima para o enfrentamento físico.
As pessoas têm tentado buscar o sentido da vida hoje?
Muitos buscam a reflexão sobre a própria vida criando condições excepcionais de existência, cria-se um hiato para buscar um eu interior de ruptura diferente do cotidiano. Talvez esteja faltando essa mesma busca na vida como ela é, ou seja, no cotidiano, no trabalho, na esfera familiar. Esse trabalho de autoconhecimento é muito menos objeto de uma revelação num cenário de isolamento e muito mais algo que vem se manifestando nas relações mais triviais. A compreensão de si mesmo tem mais a ver com as intermitências e percalços da vida. Na minha experiência, passei a me interessar pelo mundo do trabalho nas empresas e refletir sobre a vida nesses lugares. Uma aventura em terrenos de isolamento é pouco democrática. Só assim conseguiremos alcançar o amor pelo trabalho.
Existe uma sensação de baixa auto-estima pairando no ar que nos atinge como brasileiros, uma sensação de inferioridade que não nos deixa ser felizes?
Em minhas palestras pelo País, percebo algumas iniciativas no mundo do trabalho que contrariam esse pressuposto. Na área da saúde, por exemplo, há muitos empreendimentos bem sucedidos no âmbito privado e público, mesmo que este ainda enfrente dificuldades. O mundo disputa o empreendedorismo brasileiro. É preciso perceber que a percepção da opinião pública sobre a economia é fortemente determinada pelos meios de comunicação.
Muitas obras e palestras suas são classificadas como literatura de autoajuda. Como este nicho de mercado tem se transformado?
A palavra autoajuda virou uma categoria de produção editorial que abriga manifestações muito distintas. Dentro dela há propostas e objetivos diferentes. Se a autoajuda respeitasse o que quer dizer, ou seja, cada um refletindo como viver melhor, teríamos um ganho de lucidez. Mas nem sempre ela entrega o que propõe. Muitas vezes ela se limita a dicas e conselhos empobrecedores. Não é porque alguém se deu bem fazendo alguma coisa que essa mesma coisa se aplica a outras pessoas. Talvez o grande problema seja a pretensão de sua extensão. A autoajuda no seu sentido mais próprio seria a certeza de que cada um tem condições e possibilidades cognitivas, emocionais e imaginativas de elocubrar sobre a própria vida.
No vídeo abaixo, Clóvis de Barros Filho discorre sobre ética pessoal citando exemplos do cotidiano, de maneira simples e direta