O físico e engenheiro Ivair Gontijo, de 60 anos, nascido em uma cidadezinha chamada Moema, no interior de Minas Gerais, é um dos homens mais próximos de Marte atualmente. Liderando a equipe de engenheiros e cientistas da Nasa que avaliam os dados enviados pelo robô Perseverance, que aterrissou no solo marciano em fevereiro, ele deverá um dos primeiros seres humanos a saber se algum dia existiu vida no Planeta Vermelho, o maior objetivo da missão. Sob seu comando está um dos equipamentos mais sofisticados e decisivos do Perseverance, a SuperCam, capaz de detectar “assinaturas biológicas” de bilhões de anos em resíduos minerais. Gontijo foi um dos primeiros a ver imagens da entrada do robô no delta do rio que corria para dentro da cratera Jezero no passado distante. E também a ouvir o som do helicóptero voando em Marte. Falta agora descobrir algum sinal de vida ancestral. “Passamos os primeiros 100 sóis (100 dias marcianos) testando instrumentos e todo o veículo, além de soltar o helicóptero para fazer oito voos em Marte”, disse Gontijo para a ISTOÉ. “Está tudo funcionando perfeitamente, talvez até um pouco melhor do que nos permitíamos esperar.”

O senhor participou do desenvolvimento da SuperCam, um dos principais equipamentos de captação de informações da Perseverance. Como ele funciona e o que se espera dele?
A SuperCam é um instrumento complexo, fruto de uma colaboração entre sete instituições da França, a Universidad de Valladolid na Espanha e o Los Alamos National Laboratory no estado do Novo México aqui nos EUA. Ele usa um laser pulsado de alta potência e faz quatro tipos de medidas de espectroscopia. Com esses resultados podemos medir quais elementos químicos da tabela periódica estão presentes nas rochas em Marte. Além disso, essas medidas também nos contam como esses elementos se combinam para formar minerais e quais famílias de minerais estão presentes nas rochas. Isso é muito importante para nós, porque alguns minerais são melhores que outros para guardar “assinaturas biológicas” por bilhões de anos. A SuperCam tem ainda uma câmera que tira fotos coloridas com a mais alta resolução que todas as outras câmeras do veículo. Finalmente, uma sexta técnica usada pela SuperCam é o seu microfone de alto ganho. Com ele já gravamos até o som produzido pelo voo do helicóptero Ingenuity.

Qual a informação mais surprendente trazida pelo equipamento até agora?
Acho que são as lindas fotos de camadas de rochas sedimentares do delta do rio que corria para dentro da cratera Jezero no passado distante. E também o som do helicóptero voando em Marte.

O principal objetivo da missão é achar vida ancestral microbiana em Marte. Acha que ele está próximo de ser atingido? Acredita que pode ser achado algo além da vida microbiana, sinais de vida mais complexa, por exemplo?
O objetivo da missão Mars 2020 é procurar por material orgânico genuinamente marciano para coletarmos amostras que serão deixadas na superfície de Marte. Missões futuras poderão ir para Marte para coletar as amostras e trazê-las para a terra, para fazermos os estudos aqui. O delta do rio que corria para dentro da cratera se formou em torno de 3.5 bilhões de anos atrás. Uns 500 milhões de anos mais tarde toda a água desapareceu e sobrou somente os vestígios sedimentares do delta do rio. Nessa época em que havia água lá, o tipo de vida que existia na Terra era somente unicelular. Por isso espera-se que se encontrarmos alguma evidência de que houve vida lá, esta seria também unicelular.

Qual é a análise que o senhor faz do desempenho do Perseverance até agora? Está dentro do esperado?
Passamos os primeiros 100 Sóis (100 dias marcianos) testando instrumentos e todo o veículo, além de soltar o helicóptero e fazer oito voos em Marte. Está tudo funcionando perfeitamente, talvez até um pouco melhor do que nos permitíamos esperar. O instrumento Moxie, por exemplo, já demonstrou que a produção de oxigênio em Marte também é possível.

O conhecimento que acumulamos de Marte desde que a Perseverance chegou lá supera todos os conhecimentos que tínhamos até então?
O objetivo do veículo Perseverance é procurar por material orgânico. Ele está começando agora sua primeira campanha científica. Pelo menos duas coisas feitas até agora são pioneiras e nunca tinham sido tentadas antes: a produção de oxigênio usando o gás carbônico (CO2) presente na atmosfera do planeta. Este é mais um dos pequenos passos que precisamos dar para que os humanos possam um dia fazer uma viagem para Marte. Outro é a demonstração de voo do pequeno helicóptero na atmosfera marciana, que é extremamente rarefeita. Para se ter uma ideia, a atmosfera marciana próxima ao solo tem a mesma densidade que a atmosfera a 30 quilômetros de altura na Terra.

Quanto tempo a informação coletada em Marte demora para chegar na Terra? E quanto demora para ser analisada?
Depende de onde Marte e Terra estão em suas órbitas. O tempo mínimo para um sinal sair de Marte e chegar à Terra é de cerca de três minutos quando os planetas estão em seu ponto mais próximo e o tempo máximo é pouco mais de 22 minutos. No momento, um sinal de micro-ondas viajando à velocidade da luz (one way light time) gasta 20 minutos e 55 segundos entre a Terra e Marte. No entanto, isso não é muito relevante para nossas operações. Temos uma “cadência” de um dia: recebemos fotos e dados científicos de Marte, além de dados de engenharia mostrando temperaturas e o “estado de saúde” de cada instrumento. Esses dados são avaliados por vários grupos ao mesmo tempo. Os cientistas avaliam os resultados e decidem os alvos para estudos e medidas no próximo dia em Marte. Ao mesmo tempo, nós da engenharia estamos checando detalhes de cada instrumento para garantir que ele fez suas medidas corretamente e que o equipamento está apto para executar parte das operações no dia seguinte. Novos comandos são criados e tudo é testado para garantir que teremos tempo suficiente para fazer aquelas medidas, verificar se a carga na bateria do veículo é suficiente e tomar medidas de controle.

O veículo se move constantemente?
Em muitos dias mandamos também comandos para o veículo se mover em Marte. Tudo isso tem de ser testado para garantir que vai funcionar lá. No final desse processo todo, os comandos são transmitidos da Terra para um dos satélites em órbita de Marte. Depois de recebidos lá, o satélite retransmite esses comandos para o veículo no solo marciano. Durante o dia em Marte o veículo vai executar todos aqueles comandos, coletar dados e na tarde ou na noite marciana, ele se prepara e na hora certa passa a transmitir todos aqueles dados codificados em micro-ondas para o céu marciano. Nesta hora haverá um dos satélites passando naquela região do céu que vai captar os dados. Possivelmente a Terra pode não estar visível de lá, naquela hora. Então, mais tarde, quando o satélite avista a Terra de outro ponto de sua órbita, ele vai retransmitir os dados do Perseverance para a Nasa. Esses dados são recebidos pelas antenas da Deep Space Network (DSN) e vem parar em nossos computadores, muitas vezes, trabalhando de casa. Aí o processo começa todo de novo. Então esse ciclo dura um dia.

Qual é a sua função na missão Perseverance? Há outros brasileiros trabalhando nesse projeto?
Eu trabalho como “Payload Downlink Coordinator Lead”, que significa em português líder dos coordenadores de dados. Lidero a equipe de engenheiros e cientistas que avaliam os dados que chegam de Marte todo dia. No final desse processo, passo informações para o grupo que está criando os novos comandos. Temos alguns outros brasileiros trabalhando no projeto e pelo menos um deles trabalha com operações diárias em Marte. Possivelmente tem mais, mas como nossos grupos estão distribuídos no mundo todo, não conhecemos todas as pessoas do projeto.

O senhor diz que vive hoje no fuso de Marte, sua rotina de trabalho acompanha o dia de Marte. Pode explicar isso?
Marte não tem um fuso horário fixo em relação à Terra. Por exemplo, entre Los Angeles e Brasília nessa época do ano, com horário de verão aqui, temos quatro horas de diferença de fuso horário. Hoje a diferença entre a minha hora local aqui (21:36) e a hora onde o Perseverance está em Marte (22:35) é de 1 hora. Amanhã essa diferença será 40 minutos a menos, porque o dia marciano é 40 minutos mais longo que o nosso. Em dois dias a diferença será 80 minutos a menos e assim por diante. Então a cada 3 dias é como se o fuso horário de Marte mudasse duas horas (40 minutos por dia x 3 dias = 120 minutos) para menos.

Qual é o ambiente hoje na Nasa? Há uma sensação de momento histórico ou de que alguma descoberta marcante está próxima? E como lidar com a imaginação, com o pensamento desejoso de uma descoberta?
O pouso dentro de uma cratera pequena, cheia de rochas espalhadas já foi um momento histórico. Adicione a isto a produção de oxigênio e o voo do helicóptero. Todos são feitos históricos de engenharia. Vai ser super interessante quando o veículo começar a subir pelo delta do rio, examinando suas rochas sedimentares. Temos de esperar para ver o que ele vai encontrar por lá. No momento estamos a uns dois quilômetros de distância do local que pretendemos alcançar.

O que o senhor espera dessa corrida espacial privada? Voltaremos à Lua em 2024? Acha que Elon Musk vai encurtar o caminho para Marte?
Achamos isso muito bom, é claro e desejamos muito sucesso a todas as equipes envolvidas. Isso significa muito mais investimento nessa área e para nós engenheiros e cientistas aeroespaciais, isso significa mais oportunidades de empregos também.

E os Ovni? O Pentágono acaba de reconhecer que não tem qualquer explicação para 143 fenômenos aéreos não identificados. É uma mudança importante de postura? Isso diz alguma coisa para o senhor? 
Trabalhamos com ciência e para ser ciência tem de ser reprodutível. Não temos como reproduzir nenhum desses fenômenos, mas é interessante que existe um grande número deles. Isso quer dizer que são fenômenos que ocorrem com certa frequência. Não se sabem suas causas ou suas fontes. Pode ser que sejam explicados mais tarde, então é bom ir criando um catálogo deles, para estudos comparativos futuros.

O senhor nasceu numa pequena cidade no interior. Como é esse salto do local, do provinciano, do particular para o Cosmos? Em que medida o seu olhar da infância ajuda nessa experiência?
Sugiro aqui a leitura do meu livro “A caminho de Marte” (editora Sextante) que ganhou o prêmio Jabuti em 2019. Nele eu discuto minha trajetória com muitos detalhes. E explico como um mineirinho saiu do interior do Brasil e chegou à Nasa.