É possível medir o grau de civilidade de um povo pela forma como ele trata sua cultura. A partir das diversas formas de expressão artística e popular, ela é maneira como registramos na história quem somos, o que sentimos e como vemos o mundo. A cultura é muito mais do que um conjunto de manifestações artísticas: ela traduz a própria identidade de um grupo de pessoas unidas por seus costumes e sob uma mesma bandeira.

O dia de ontem, 29 de julho de 2021, ficará marcado na cultura brasileira por duas razões – infelizmente, opostas. Por coincidência, as duas tiveram em comum um elemento da natureza: o fogo.

De manhã, tive o prazer de visitar o Museu da Língua Portuguesa, na estação da Luz, no centro de São Paulo. Totalmente reformado, ele será reinaugurado oficialmente nesse fim de semana após ficar fechado durante seis anos em decorrência de um incêndio.

À noite, sofri ao ligar a TV e ver em chamas um prédio da Cinemateca Brasileira, principal arquivo sobre a história cinematográfica do País. O prejuízo ainda foi contabilizado, mas, segundo o cineasta Carlos Augusto Calil, presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca, o fogo consumiu quatro toneladas de documentos. “Perdemos 60 anos de história”, afirmou. E completou com um veredito devastador: “Não foi uma fatalidade”.

Pode parecer coincidência, mas os dois eventos têm relação entre si. Na cerimônia do Museu da Língua Portuguesa, no sábado 31, o governador João Doria receberá os presidentes de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, além dos ex-presidentes brasileiros Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e José Sarney. Reconhecido como um dos mais inovadores do mundo, o museu valoriza a identidade dos povos unidos pelo mesmo idioma. Também vai voltar a sediar atividades educativas e exposições dedicadas a grandes nomes da literatura.

“É um museu de informação, de educação, de entretenimento e de produção de conhecimento sobre este que é o nosso maior patrimônio cultural, a língua portuguesa. É também o que melhor nos conecta com os demais países lusófonos”, afirmou Sérgio Sá Leitão, secretário Estadual de Cultura. A reforma custou R$ 85 milhões e foi realizada graças a uma parceria com empresas privadas, via leis de incentivo. Após visitar o local, confesso que saí de lá com o sentimento de esperança renovado em relação à cultura brasileira.

À noite, o noticiário me trouxe à realidade. E lembrei que vivia em um país governado por Jair Bolsonaro, o pior presidente da história.

O incêndio que destruiu a Cinemateca, assim como havia acontecido com o Museu da Língua Portuguesa, foi acidental. O que foi criminosa foi a negligência com que o governo federal, mais uma vez, trata a cultura brasileira. Bolsonaro odeia tudo que diz respeito à área porque não passa de um ignorante, um homem catapultado a um cargo para o qual não tem sequer capacidade cognitiva de compreender a dimensão do estrago que sua tosquice pode causar. Como se não bastasse, nomeou um poste como secretário de Cultura, Mário Frias, cuja única qualidade é compactuar com Bolsonaro a respeito do projeto de destruir a cultura brasileira. Os dois têm ódio daquilo que não conseguem entender.

A prova dessa negligência vem dos próprios funcionários da Cinemateca, que vêm avisando sobre o risco de incêndio no local há um bom tempo. Em 12 de abril, eles publicaram um manifesto alertando oficialmente as autoridades. O que Mário Frias fez? Nada. Na maioria das vezes, comemoro quando ele não faz nada. Afinal, sempre que tenta fazer alguma coisa, a situação piora. Nesse caso, porém, deixar de fazer a manutenção em um equipamento público como a Cinemateca equivale a condená-lo à destruição. Sabemos que esse é o objetivo do governo, mas, mesmo assim, não podemos assistir calados a esse filme: ele não terá um final feliz.