Coluna: Ricardo Kertzman

Ricardo Kertzman é blogueiro, colunista e contestador por natureza. Reza a lenda que, ao nascer, antes mesmo de chorar, reclamou do hospital, brigou com o obstetra e discutiu com a mãe. Seu temperamento impulsivo só não é maior que seu imenso bom coração.

Quem com ódio fere com ódio dá o direito de ser ferido. Aviso: leiam antes de tentar interpretar

Quem com ódio fere com ódio dá o direito de ser ferido. Aviso: leiam antes de tentar interpretar

Minha mãe não faleceu por causa da Covid; faleceu com Covid. Possivelmente, a maldita doença acelerou um processo que já estava praticamente sacramentado. Semanas antes, e semanas após, Bolsonaro proferiu obscenidades de costume, sobre essa tragédia insuperável que é a pandemia do novo coronavírus. Suas frases ofensivas, jocosas e desumanas jamais me atingiram como filho-órfão, mas sempre me atingiram como ser humano solidário que sou.

É a primeira vez que falo neste assunto – a morte de minha mãe – em público. Não sou do tipo que divide dor, e tampouco que se promove na dor. Minha ligação com ela era muito mais do que umbilical. E ela foi, até o último dia, a mãe que sempre precisei. E eu fui para ela, também até o último dia, muito mais do que um filho; fui o pai e o marido que nunca teve, mas que sempre precisou. Hoje, pouco mais de oito meses após sua perda, ainda arrasado por sua ausência, já não me preocupo em expor publicamente, e ler e ouvir as barbaridades que certamente virão.

Particularmente, não desejo a morte de Jair Bolsonaro. Não por ele, mas por seus filhos. Sobretudo a menina, ainda com dez ou doze anos, não sei ao certo. Se, cinquentão que sou, sofro como estou sofrendo pela perda de uma mãe com oitenta e dois anos, me esfacela o coração pensar na dor de uma criança diante da morte de um pai tão jovem. Além disso, tenho uma filha com quinze anos, e minha ausência lhe traria feridas incuráveis. Odiar Bolsonaro não me torna alguém insensível aos filhos. E é por isso que não desejo vê-lo sob sete palmos de terra.

Fosse o presidente um solitário neste mundão de meu Deus, aí sim eu poderia torcer por seu fim. Bolsonaro é o tipo de pessoa que não faz falta à humanidade. Ao contrário. Sua existência só a torna pior, mais triste, mais mesquinha, mais cruel. É um sujeito detestável nos modos e nos pensamentos, e mais ainda nas falas asquerosas, repetidas com orgulho à exaustão. O fastio que me provoca é semelhante à pior das indigestões. E para quem não sabe, meus sentimentos em relação a Lula da Silva não são nem um pouco melhores; ainda que diferentes.

O Brasil certamente estaria muito melhor sem Jair Bolsonaro na Presidência da República. Ao menos na questão ambiental, metaforicamente falando – já que, literalmente, também. O ar ficaria menos denso, menos fétido, muito mais leve e respirável sem a overdose diária de ódio, preconceito, homofobia, xenofobia, autocracia e mentiras que faz questão de aplicar ao País pela manhã, tarde e noite, sete dias por semana, trinta dias por mês, ininterruptamente, há mais de dois anos e meio.

Fico surpreso e indignado com a hipocrisia reinante na Bolsolândia, aquela terra de faz-de-conta onde há um mito que não é amigo do Queiroz, que não é pai de um senador suspeito de peculato, que não se omite diante de corrupção, que não zomba da doença e da morte de milhares de pessoas, que não faz troça do sofrimento de milhões de enlutados, que não auxilia com vigor a disseminação do vírus, e que não ofende e denigre pessoas por causa de sua orientação sexual e ideologia política, quando os devotos se revoltam contra quem somente retribui, com palavras e sentimentos, aquilo que recebe do deus Messias.

Ora, o capitão pode desejar a morte alheia, mas não o contrário? Pode fazer piada com gente sufocando, mas não o contrário? Pode tratar como asqueroso alguém que assume a homossexualidade, mas não contrário? Pode não se importar com a dor de quem perde um ente querido, mas não o contrário? A prerrogativa da cretinice e miserabilidade humana agora é exclusiva do patriarca do clã das rachadinhas?

Parafraseando o próprio, por mim, ‘se morrer, morreu’. Afinal, ‘todo mundo morrerá um dia’. Mas, enquanto isso não acontece, e, repito, não torço para que aconteça, e, repito outra vez!, por causa de seus filhos, o Brasil precisa continuar apurando, um por um, todos os possíveis crimes, comuns e de responsabilidade, que o atual presidente da República – e seus supostos cúmplices – porventura tenha cometido.

A CPI da Covid não pode nem deve parar. A vida de Bolsonaro não é melhor nem mais importante do que qualquer uma das mais de 530 mil que se foram (também) por causa dele. Muito pelo contrário, até. A CPI, em respeito a estas centenas de milhares de vidas perdidas, e aos milhões de enlutados Brasil afora – crianças, inclusive -, precisa seguir firme e focada na apuração de tudo e de todos. É o mínimo que esse bando de congressistas, em boa parte cúmplices, deve fazer por quem banca a boa vida que levam.