Um dos benefícios colaterais da CPI da Covid foi apontar que vários militares estão envolvidos nas tramoias com compras de vacinas. Quando escalou o general Eduardo Pazuello para chefiar o Ministério da Saúde, Jair Bolsonaro usou o argumento de precisava de um especialista em logística para lidar com a emergência. O resultado, como se viu, foi desastroso. Pazuello não apenas fracassou no colapso de Manaus como retardou a compra de vacinas, a única solução para superar a pandemia. Caiu em desgraça, virou símbolo do negacionismo criminoso e corre para escapar da Justiça.

Mas Pazuello cumpriu outra missão. Encheu o Ministério da Saúde de militares, seguindo outra orientação do presidente. Bolsonaro deseja ocupar a administração pública com fardados, com o falso argumento de que eles são mais preparados. Na verdade, planeja povoar os ministérios com um corpo armado e politizado, pronto para apoiar seu projeto autoritário de poder. Como aconteceu com o fenômeno dos milicianos, a contaminação do Exército com interesses pecuniários e escusos pode levar à criação de grupos subterrâneos criminosos que ameaçam as instituições democráticas.

É o que Bolsonaro deseja. O exemplo vem de um país vizinho, a Venezuela. Lá, os militares foram deslocados para as mais diversas áreas com o objetivo de apoiar o regime. O país tem 2 mil generais, seis vezes mais do que o Brasil. Maduro subverteu a corporação ao distribuir benesses e cargos aos oficiais, precarizando sua função e permitindo toda a sorte de desvios e corrupção. No Brasil, as Forças Armadas lidam com inúmeras deficiências, mas construíram a duras penas uma imagem de disciplina e respeitabilidade após o regime militar.

Essa aura está sendo corroída por Bolsonaro, a passos largos. As Forças Armadas precisaram levar uma advertência do TCU para liberar os hospitais militares a doentes civis de Covid, o que se recusavam a fazer, mesmo com leitos disponíveis. Pazuello desafiou o regulamento militar ao participar de um ato político com Bolsonaro, mesmo sendo um general da ativa, o que é vetado. O Comando do Exército não apenas aceitou essa indisciplina, como colocou o processo sob sigilo por um século, premiando o amotinado. O papel nada edificante dos militares no Ministério da Saúde, incluindo o general, seus coronéis e tenente-coronéis, já está sendo devidamente descortinado pela CPI. Agora, a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane Pinto trouxe um novo ingrediente perturbador. Mostrou com documentos encaminhados à CPI da Covid que verbas emergenciais alocadas para a pandemia foram desviadas para uso militar.

Como revelou a jornalista Malu Gaspar, de “O Globo”, o “caos” nos gastos públicos em saúde durante a pandemia incluiu R$ 140 milhões enviados ao Ministério da Defesa. Foram beneficiados as comissões aeronáuticas brasileiras em Washington (R$ 55 milhões) e na Europa (R$ 7,8 mihões), a comissão do Exército em Washington (R$ 3,1 milhões) e o Arsenal de Marinha do Rio (R$ 1,1 milhão), entre outros. É dinheiro que não tinha nenhuma  relação com a doença e escapava às restrições do teto de gastos. Trata-se de uma subversão do papel constitucional e um abuso. Se o Comando continuar a permitir tamanho desvirtuamento, o desafio não será mais limpar a imagem da instituição depois do naufrágio da ditadura. A dificuldade será muito maior: desvincular a corporação do bolsonarismo e de seus desvios.